Quem investigar os campeões de bilheteria deste ano vai encontrar os suspeitos de sempre: mais um Vingadores (Guerra Infinita já é o quarto integrante do seletíssimo clube dos 2 bilhões de dólares), outro Jurassic World, um novo Os Incríveis. Vai constatar também a queda de barreiras históricas, como o 1,3 bilhão acumulado por Pantera Negra, com elenco e realizadores quase todos negros. E vai estranhar títulos como Operação Mar Vermelho e Detetive Chinatown 2. Que filmes são esses, que nunca foram (nem serão) exibidos por aqui? Aí está a grande novidade do mercado cinematográfico: a gigantesca — como sempre — e agora meteórica presença chinesa.
Praça mais disputada por Hollywood, que a afaga até com trechos customizados de filmes (como os quatro minutos exclusivos de Homem de Ferro 3), a China protagoniza duas façanhas em 2018. No primeiro trimestre, sua arrecadação ultrapassou a bilheteria doméstica americana. Nunca um país havia cravado essa marca. E agora ela produz seus próprios arrasa-quarteirões, para consumo interno, como os dois títulos citados acima. Hollywood não sabe se ri ou se chora: o apetite da China por entretenimento ajuda a assegurar seu lucro numa fase em que a bilheteria americana é ameaçada pelo impacto esmagador do streaming — mas essa bem-sucedida produção própria preocupa os estúdios.
A bilheteria de cinema obedece a mecanismos que não param de se transformar. Quatro décadas atrás, ela se metamorfoseou na criatura cujo aspecto conhecemos até hoje. Graças ao tino artístico e comercial do Steven Spielberg de Tubarão (1975) e do George Lucas de Star Wars (1977), nasceu o blockbuster: o filme que é um evento pop. No cálculo ajustado pela inflação, Tubarão ocupa o sétimo lugar no ranking de todos os tempos, e Star Wars, o segundo. No alto do pódio prossegue …E o Vento Levou, de 1939, que amealhou lentamente o que hoje equivaleria a bilhões de dólares: os filmes eram então lançados apenas nas maiores cidades e, pouco a pouco, percorriam as praças menores e os mercados estrangeiros. Tubarão e Star Wars, porém, instituíram que um sucesso é uma experiência cultural a ser vivida imediata e coletivamente, sob pena de se ficar de fora da conversa.
Desde o sismo dos anos 70, o modelo vem se recalibrando. Firmou-se o conceito de “filme de verão”, porque as férias proporcionam tempo de lazer a crianças e adolescentes. Decorrência natural dessa estratégia: o número crescente (hoje dominante) de filmes voltados para o gosto juvenil. O fim de semana de lançamento emergiu como o momento em que se decreta a vida ou a morte de um filme: como a estreia tem de abranger o maior número possível de salas (por baixo, 10% das cerca de 40 000 telas americanas) para que o público compareça em massa, a renda despenca de semana para semana. Com a circulação instantânea de informações pela internet — mais a praga da pirataria —, criou-se o conceito de lançamento day and date: à parte os títulos de interesse limitado, os filmes hoje estreiam simultaneamente em todo o mundo.
Com tantos flancos a descoberto, a Hollywood do século XXI se protege do fracasso limitando o risco. Sua produção hoje está concentrada em filmes de super-heróis (o que tornou a Marvel um colosso), em continuações (Star Wars — O Despertar da Força quebrou a banca 38 anos depois da inauguração da saga) e em adaptações de livros que são eventos pop por direito próprio (como a série Harry Potter ou os best-sellers de Dan Brown). É o fim da inovação? De maneira nenhuma. As aventuras de super-heróis hoje assumem todas as colorações, do thriller ao drama e à comédia. As duas maiores rendas da história em valores absolutos (sem ajuste de inflação) são ideias originais — Avatar e Titanic, de James Cameron. E não é impossível imaginar que logo o restante do mundo, Estados Unidos incluídos, será apresentado à cultura pop chinesa. O mecanismo gira, e continua a se transformar — seu motor é o efêmero.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601