#5 O GLOBALISMO: Aldeia até quando?
A supremacia dos interesses mundiais disseminou-se pelo planeta nas últimas cinco décadas — um processo hoje ameaçado pelos nacionalistas e populistas
O filósofo canadense Marshall McLuhan cunhou a expressão “aldeia global” ainda nos anos 1960. Ele acreditava que, assim como os assuntos mundanos interessam a todos os indivíduos de uma mesma tribo, a comunicação de massa — via rádio e televisão — faria com que o círculo de empatia se expandisse por todo o globo, transbordando as fronteiras nacionais. “Vivemos em um único espaço restrito em que ressoam os tambores tribais”, escreveu McLuhan em A Galáxia de Gutenberg (1962). Três décadas depois, uma combinação de fatores levou habitantes do mundo todo a se sentir de fato como parte de uma aldeia global. Graças aos provedores de internet e aos canais de televisão por assinatura, notícias produzidas em qualquer canto do planeta sensibilizavam telespectadores nas capitais ou vilas mais remotas. Em 1990, o conflito no Golfo Pérsico tornou-se a primeira guerra da história transmitida ao vivo — pela CNN, a pioneira rede de televisão a cabo só de notícias, com alcance mundial. Com os produtores e os apresentadores instalados em um hotel de Bagdá, a capital do Iraque, a Guerra do Golfo recebeu cobertura 24 horas por dia e foi transmitida sem edição. Até membros do governo do ditador iraquiano Saddam Hussein acompanhavam o noticiário. Foi a realização incontestável da profecia de McLuhan.
As pessoas, e não apenas a comunicação via satélite e cabos de fibra óptica, também cruzavam as fronteiras, em busca de melhores condições de vida. Em 1990, aproximadamente 440 milhões trocaram de país. Em 2000, já eram 682 milhões. O número de viagens internacionais não parou de aumentar. Há duas décadas, ocorriam 15 milhões de voos por ano. Hoje são 36 milhões. O total de passageiros multiplicou-se por quatro, segundo a Organização da Aviação Civil Internacional.
Com as impressoras 3D e os robôs, diminuirá a vantagem em levar fábricas a países com mão de obra barata
As mercadorias também ganharam mais trânsito atrás de mercados mais atraentes, e até as companhias passaram a circular pelo mundo, num processo que se iniciou na década de 70 mas só alcançou tração mais tarde. Uma das pioneiras foi a GE, comandada pelo executivo Jack Welch. Para ele, uma empresa devia mais satisfação aos acionistas do que aos funcionários. Qualquer localidade poderia ser escolhida, desde que seguisse o imperativo de reduzir os custos e aumentar os lucros. Outra pioneira foi a Nike, que em 1975 instalou uma fábrica na China. O capital financeiro teve impulso e começou a garimpar oportunidades em todos os continentes, de dia ou de madrugada, indo e vindo ao sabor dos lucros e dos juros. O fluxo de capitais aumentou de 13,5 trilhões de dólares, em 2000, para 37 trilhões de dólares, em 2017.
A globalização — da comunicação, das pessoas, das empresas, do dinheiro — é um processo de séculos, que se estreitou na era das grandes navegações e na Revolução Industrial, mas sua etapa mais recente, pelo olhar dos historiadores, teve um marco inicial duplo: a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, dois anos depois. O espaço então foi ampliado. A Guerra Fria, que dividiu o mundo entre Estados Unidos e URSS, acabara. A tecnologia e o fluxo livre de informações fizeram do planeta a aldeia global de McLuhan. Paralelamente a essa integração, cresceu o que hoje se entende por globalismo.
“O globalismo vem da ideia de que há interesses que se sobrepõem aos temas individuais ou nacionais. Esse fenômeno está relacionado com as mobilizações sociais, como as preocupações ambientais, com os direitos humanos e as lutas das mulheres e dos negros”, diz o sociólogo e historiador americano Howard Winant, da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. O esforço para coibir o aquecimento global ilustra o conceito. Em 2015, 195 países assinaram o Acordo de Paris, para tentar conter o problema e amenizar seus impactos — até que Donald Trump, o mais isolacionista dos presidentes americanos recentes, excluísse os Estados Unidos do pacto global.
Será que Trump é o prenúncio de uma reversão histórica? Os primeiros lances mais evidentes de que o mundo se globalizava foram recebidos com simpatia, temor, dúvida e desconfiança. Acreditava-se que o processo deixaria os ricos ainda mais ricos, a ponto de, em 1999, ambientalistas, punks, fabricantes franceses de queijo roquefort e políticos americanos protestarem nas ruas de Seattle, que sediava um encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC). Atualmente, a resistência à globalização existe sobretudo nos países desenvolvidos. As nações mais ricas têm sofrido para conseguir fazer sua economia crescer e precisam lidar com a insatisfação das pessoas de classe média que não têm formação universitária e vivem saudosas dos empregos do passado no setor industrial.
A consultoria McKinsey realizou diversos estudos sobre o futuro da globalização, na tentativa de prever o que acontecerá nas próximas décadas. Uma das constatações é que o movimento de levar fábricas a países pobres, com mão de obra mais barata, sofrerá um revés. Com as impressoras 3D e o uso intenso de robôs nas fábricas, diminuirá a vantagem que antes elas haviam conseguido. Mais importante será ficar perto do mercado consumidor. No futuro, um cliente poderá entrar numa loja e encomendar um par de tênis, que será feito na hora e de acordo com a preferência do comprador. A volta das fábricas para o país de origem, contudo, não deverá melhorar os índices de emprego nas nações desenvolvidas, pois as novas instalações não farão uso intensivo de mão de obra.
As vagas estarão, cada vez mais, no setor de serviços. Atualmente, a rede de restaurantes McDonald’s emprega 375 000 funcionários no mundo. Esse número é superior ao da fábrica de automóveis Toyota, a maior do planeta, que tem 370 000 trabalhadores. O comércio seguirá crescendo, sobretudo graças à exportação de produtos e serviços por pequenas e médias empresas, beneficiadas pelas plataformas criadas por gigantes do varejo e da tecnologia, como Amazon ou Alibaba. No plano da diplomacia, os contatos formais e burocráticos entre embaixadas e consulados perderam relevância. Pequenas empresas, prefeituras e ONGs movem-se com desenvoltura entre vários países. Com a ajuda da internet, seus gerentes conseguem realizar congressos, fechar acordos e criar projetos em uma velocidade que os diplomatas são incapazes de acompanhar.
O comércio mundial multiplicou-se por oito desde os anos 1990, e o PIB per capita dos países aumentou, em média, 3%
O idioma das próximas etapas do globalismo, com a China avançando num ritmo avassalador depois de ter tirado mais de 500 milhões de pessoas da pobreza em duas décadas, deverá ser o mandarim. Da polarização entre Estados Unidos e União Soviética, o mundo poderá seguir para uma dicotomia entre Ocidente e Oriente. Nesse novo contexto, o Ocidente desenvolvido poderá cair em armadilhas protecionistas, um caminho escolhido por Trump. É improvável, contudo, que decisões arbitrárias possam reverter o processo mais amplo em curso. “Ao elevar as taxas de importação de matérias-primas e produtos, Trump pode beneficiar fabricantes nacionais, mas onerará todo o resto da população com o aumento do custo de vida”, diz Nicola Calicchio, diretor da McKinsey para a América Latina. “Se optarem por se fechar, os países avançados apenas perderão relevância para o resto do mundo.”
No cômputo geral, a globalização trouxe enorme riqueza para a humanidade. O comércio mundial multiplicou-se por oito desde os anos 1990, e o PIB per capita dos países, ainda que em velocidades diferentes, aumentou, em média, 3% ao ano na década de 90. “A globalização ajudou a impulsionar as nações em desenvolvimento que tinham custo de mão de obra baixo. No fim, esse processo foi positivo ao reduzir a desigualdade entre nações ricas e pobres”, explica o economista Sérgio Firpo, professor do Insper, em São Paulo (veja o quadro ao lado). Em 2000, a ONU estabeleceu os Objetivos do Milênio. O primeiro deles era reduzir a população que vivia na pobreza à metade em 2015. A meta foi alcançada cinco anos antes, em 2010. Nesse período, a quantidade de gente que vive na extrema pobreza diminuiu em 1,1 bilhão. Segundo a ONU, o efeito da globalização em melhorar a renda das pessoas aconteceu principalmente em países do Hemisfério Sul. Além disso, o comércio entre países refreou a propensão às guerras. “Uma das razões por que penso que não devemos bombardear os japoneses é que eles fizeram minha minivan”, escreveu o jornalista americano Robert Wright no livro Não Zero: a Lógica do Destino Humano (1999).
Nem tudo é simples assim. Em diversas nações, a globalização começou a formar cidadãos ressentidos por seu papel marginal no mercado de trabalho, por causa das novas tecnologias e pela transferência das indústrias para outras partes do mundo. “A globalização está sob ameaça, tanto da direita quanto da esquerda”, diz o sociólogo mexicano Gerardo Otero, professor da Universidade Simon Fraser, no Canadá. Do lado da esquerda, ele cita a eleição de Andrés Manuel López Obrador, o AMLO, no México. “AMLO promove um tipo de nacionalismo e protecionismo com o objetivo de recuperar algumas atividades econômicas dentro do país”, afirma Otero.
Nos países desenvolvidos, a ameaça brota da direita nacionalista. Nos Estados Unidos, Trump tem elevado impostos sobre produtos chineses e fechado as fronteiras a imigrantes. Na França, a Frente Nacional de Marine Le Pen chegou ao segundo turno nas últimas eleições, em maio de 2017. No caso de um fracasso do governo de Emmanuel Macron, o grupo pode ressurgir com força. Na Alemanha, o Alternativa para a Alemanha, avesso aos imigrantes e à União Europeia, conquistou cadeiras pela primeira vez no Parlamento, em 2017. “Vivemos num mundo interconectado, em que todas as partes são afetadas pelo que fazemos”, diz o economista americano Jeremy Rifkin, autor do livro A Terceira Revolução Industrial (2011). O fundamental, neste momento, é não esquecer essa lição.
Com reportagem de Thais Navarro
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601