Calmantes para dormir. Estimulantes para melhorar a concentração. Pílulas para emagrecer. Na década de 60, a FDA, a influente e reputada agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos, aprovava, em média, quinze novos remédios a cada ano. Era o início do desenvolvimento dos chamados blockbusters, remédios que pareciam representar uma bala de prata para os males mais comuns de nosso tempo. Em 1987, aprovou-se a lovastatina, antídoto contra o colesterol. No mesmo ano, a fluoxetina, antidepressivo conhecido pelo nome comercial Prozac, rapidamente se anunciou como uma arma letal contra a melancolia. Em 1998 chegou o metilfenidato, a Ritalina, considerada um calmante para as crianças e apelidada de “babá química”. E então brotou o sildenafil, o Viagra, a milagrosa pílula azul com a qual as noites de amor passaram a exigir apenas o desejo. Nos últimos dez anos, realizaram-se, em média, 32 aprovações anualmente. Em toda a sua história, desde o primeiro remédio produzido em escala industrial, a Aspirina, a FDA já aprovou 1 600 substâncias.
O impacto de cada medicamento foi fenomenal, um estrondo atrás do outro, numa espetacular corrida promovida pela medicina. No entanto, a partir do fim dos anos 1990, deu-se uma novidade ainda mais luminosa. A comunidade científica chegou à conclusão de que custaria caro demais — e sem o mesmo sucesso — olhar para as doenças sem levar em consideração aspectos individuais e intransferíveis dos pacientes. Com o Projeto Genoma, concluído em 2003, descobriu-se que os genes desempenham papel seminal na origem das doenças — descoberta nada surpreendente, mas fundamental. É como se houvesse uma doença para cada pessoa, e portanto um tratamento específico para cada caso.
Estamos a um pequeno passo de superar a lógica da cura, que dominou a ciência por séculos, para entrar na era do fim das doenças
Os blockbusters já não produziriam o efeito sonhado. Tome-se como exemplo o câncer. Sabe-se que a proliferação desordenada de células malignas causa tumores. Mas a forma como cada célula maligna se comporta depende de inúmeros fatores de cada organismo. O resultado mais extraordinário dessa nova abordagem — de uma medicina para cada um, a chamada medicina personalizada — ocorreu no fim do ano passado.
É a história da garotinha americana Emily Whitehead, 13 anos, a primeira criança no mundo a ser curada de leucemia com uma nova terapia capaz de reprogramar as células para atacar o mal de modo absolutamente único. Com o nome de Car-T, o tratamento foi aprovado pela FDA em 2017. Estima-se que, nas próximas décadas, a individualização da medicina será estendida à maior parte das doenças — e aí, sim, estaremos mais perto da tão esperada cura total.
E mais: a personificação chegará à prevenção. Testes genéticos identificarão os riscos de doenças crônicas, como diabetes e Alzheimer, e dessa forma será possível intervir antes do surgimento dos males. Diz o geneticista Salmo Raskin: “No futuro, tratar será exceção. A regra será evitar as doenças”. Estamos, portanto, a um pequeno passo de superar a lógica da cura, que dominou a medicina por séculos, para entrar na era do fim das doenças.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601