Há cinco décadas, o primeiro transplante de coração do Brasil, realizado pelo médico Euryclides de Jesus Zerbini, deu início a uma revolução. A possibilidade de transferir um músculo cardíaco saudável para substituir o órgão doente salvava vidas. O primeiro transplantado, João Ferreira da Cunha, o João Boiadeiro, morreu 28 dias após a cirurgia. O segundo transplantado viveria 378 dias. Em ambos os procedimentos, celebrou-se o sucesso. Mas havia um problema incontornável: era preciso encontrar um meio de combater a rejeição ao órgão transplantado — e, enquanto isso não acontecesse, os transplantes ficariam limitados a casos extremos.
Cinquenta anos se passaram. A ciência evoluiu e, agora, há medicamentos eficazes contra a rejeição. O transplante tornou-se corriqueiro para quase todos os órgãos. Em 2017, foram realizadas mais de 27 000 operações do gênero no Brasil. Ainda assim, o tempo de sobrevivência é mais ou menos limitado, dependendo do órgão. No caso do coração, a expectativa média é de dez anos. Como expandir o limite de tempo? “Enxergar a medicina de outra maneira”, responde Juliana Giorgi, cardiologista do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Essa outra maneira envolve uma estrada de duas vias: o uso de impressoras 3D e a manipulação de células. As impressoras serão capazes de criar estruturas personalizadas de acordo com a anatomia do paciente. Pesquisadores do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça, deram os primeiros passos, usando a técnica para a criação de uma cartilagem desenvolvida a partir do material genético do próprio paciente. Em paralelo, a ciência estuda o uso de células-tronco embrionárias, que podem se transformar em unidades especializadas de qualquer órgão ou tecido do corpo humano.
Nas próximas décadas, em vez do órgão doado, o paciente poderá ter células saudáveis implantadas em uma cirurgia pouco invasiva. Em 1969, o médico americano Walton Lillehei previu que as cirurgias de transplante se tornariam uma forma rotineira de salvar vidas. E vaticinava: “Para predizer esse futuro, basta olhar o passado, quando a simples ideia de abrir um coração vivo era um sonho demoníaco”. É, enfim, a abertura de uma avenida que norteará a medicina: já não se tratará de transplantar, mas sim de substituir, tal como já fazemos com as peças de máquinas.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601