Da década de 60 ao início do século XXI, nenhum item de consumo foi tão decisivo para o ser humano quanto o carro. Símbolo de status, ele era um potente resumo da masculinidade e da prosperidade, proporcionando conforto e satisfação a cada membro da família. Jovens viam a entrega da primeira chave como o ritual definitivo de transição para a vida adulta. O automóvel foi adotado como política de Estado e motor de desenvolvimento — isso se deu em todo o mundo, sobretudo no Brasil. Cidades inteiras foram planejadas a partir dele, com destaque especial para Brasília. Duradouro, o casamento entre brasileiros e seus automóveis parecia indissolúvel. Hoje, porém, exibe sinais de esgotamento. No ano passado, a frota nacional cresceu apenas 1%, número considerado baixo (entre 2001 e 2012, período de crédito fácil, ela dobrou, passando de 24 milhões para 50 milhões).
É claro que a crise econômica é um componente das vendas fracas. Mas não é suficiente para explicar o que aconteceu. O glamour em torno dos automóveis ficou opaco. Ter um carro tornou-se caro demais, com as taxas, os seguros e a manutenção, e chato demais. Além do metrô, uma combinação vem tomando seu lugar em razão da praticidade e do apelo ecológico. De um lado, o surgimento dos aplicativos de transporte, como o Uber, o mais famoso deles, já com 20 milhões de usuários no Brasil. Outro fator é a produção de bicicletas, que deverá atingir 727 000 unidades neste ano, 9% a mais que em 2017. O setor estima que a expansão será puxada, sobretudo, pelas classes A e B.
A crise econômica é só um componente na queda das vendas. Dirigir tornou-se caro, pouco prático, antiecológico e sem glamour
O fenômeno comportamental é ainda mais consolidado nas economias avançadas. Muito à frente da América Latina no planejamento urbano, cidades europeias adotaram o conceito de transporte multimodal como norma — aquele em que, em vez de concentração num meio específico, há combinação de uma ou mais opções, o que racionaliza o deslocamento diário. A onda é tão intensa que varre até os Estados Unidos, pátria mundial do automóvel como pilar da vida moderna. Conduzido pela Universidade de Michigan, um levantamento mostra que, em 1983, 80% dos americanos que chegavam aos 18 anos tinham carteira de motorista. Em 2014, não passavam de 60%. “A redução foi contínua. Ou seja, ela aconteceu tanto em períodos de crescimento econômico quanto de recessão”, diz Michael Sivak, professor da instituição e autor do estudo.
Os carros, evidentemente, não vão sumir dos cruzamentos. Novas tecnologias desencadearam uma corrida entre investidores. A principal delas é o veículo autônomo, que se locomove sem a necessidade de um condutor. O Google até criou uma empresa específica para tratar do tema, a Waymo, que, antes mesmo de lançar qualquer modelo comercial, já é avaliada em 175 bilhões de dólares. A Uber, por sua vez, planeja concretizar outra ideia saída dos contos de ficção científica. Até 2023, a companhia quer lançar em Dallas e Los Angeles, nos Estados Unidos, o “UberAir”, como chama seu táxi voador. Com tanta novidade, é provável que as próximas gerações ainda andem de “carro”, mas desconheçam a antiga satisfação de possuí-lo — e nem tenham ideia do que significou no passado segurar suas chaves pela primeira vez.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601