A eternidade de Pelé foi construída de 1958 a 1970, do primeiro ao terceiro título mundial do Brasil. Dali para a frente, dos anos 1970 até agora, o Pelé mais influente foi outro: Johan Cruyff (1947-2016). Dos seus pés, no Ajax de Amsterdã, no Barcelona da Espanha e na seleção holandesa que encantaria o mundo com o vice-campeonato de 1974, nasceu o futebol de hoje. De mãos dadas com o treinador Rinus Michels, Cruyff (pronuncia-se Cróif) pôs em prática uma concepção de jogo ancorada na ocupação de todos os espaços, na antecipação e na velocidade, no desrespeito voluntário às posições no gramado, num misto de balé e guerra.
A Laranja Mecânica, como ficou conhecida a seleção holandesa de 1974, movimentava-se como um batalhão, cercando os adversários, adiantando-se em bloco para deixar os atacantes impedidos, como se vê na foto abaixo. Daquela ideia revolucionária do “futebol total”, brotaria o estilo hegemônico das atuais equipes vencedoras, de posse de bola, muita posse de bola, de intensa troca de passes — embora, ressalve-se, a Copa da Rússia talvez tenha selado o início do fim dessa regra. As três seleções que mais ficaram com a bola — a Alemanha, a Argentina e a Espanha, todas com mais de 64% — saíram cedo do torneio. A campeã, a França, ficou no 18º lugar em possessão. Mas é cedo para decretar o fim de um tempo, que o digam os times treinados por Pep Guardiola, o mais refinado discípulo de Cruyff, que depois de pendurar as chuteiras fez fama e sucesso como treinador.
Deu-se, com os holandeses, o nascimento de outro modo de enxergar o futebol — o esporte como carbono de uma sociedade. Costuma-se associar o futebol brasileiro à irreverência de um Garrincha macunaímico. Talvez nunca tenha sido assim, e certamente não o é nos dias de hoje. O escritor britânico David Winner esgrime uma tese que ajuda a entender por que o “futebol total” é uma bela ideia — gloriosamente holandesa — de nosso tempo. Diz ele: “Ao reinventarem o jogo como uma competição de controle do espaço, Cruyff e Michels estavam inconscientemente recorrendo à cultura nativa. Durante séculos, o povo da Holanda havia encontrado formas inteligentes de pensar, explorar e controlar um território pequeno, de terras lotadas e ameaçadas pelo mar. É sensibilidade que aparece nas telas de Vermeer, Saenredam e Mondrian, na arquitetura e, finalmente, também no futebol”.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601