#4 A LEI: Prevalência inédita
As democracias constitucionais, como o Brasil, colocaram a Justiça no centro da vida nacional, mas já há movimentos para reverter esse fenômeno
A foto acima mostra o então líder sindical Luiz Inácio da Silva, quando ainda não se chamava oficialmente “Lula”, falando a metalúrgicos em março de 1979, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Na foto mais abaixo aparece o então ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2012, no julgamento do mensalão, marco inicial da derrocada ética do PT, que acabaria levando Lula à prisão. Entre uma imagem e outra, passaram-se 33 anos, mas a mudança mais notável não é visível em nenhuma foto: a lei, antes aplicada apenas para os pequenos e os pobres, começou a valer também para punir os poderosos.
Pois a lei continua a mesma, ou quase a mesma, mas a Justiça mudou. Com a chegada de uma nova geração de magistrados e procuradores, ela passou a ser menos condescendente com os criminosos de colarinho branco e, no rastro de seu revigoramento, tornou-se até mais do que isso: virou o epicentro da vida política nacional. A esse fenômeno, no qual a Justiça adquire enorme relevância numa ampla gama de assuntos públicos, os especialistas dão o nome de “judicialização da política”. Ou seja: os grandes temas nacionais, em vez de ser definidos pelo Parlamento, acabam sendo objeto de decisões do Poder Judiciário.
É comum atribuir a judicialização da política brasileira ao detalhismo da Constituição de 1988. Ela é detalhista mesmo, mas o fenômeno é uma marca global. Acontece inclusive nos Estados Unidos, cuja Constituição é notoriamente objetiva. Talvez o exemplo mais gritante tenha se dado precisamente entre os americanos, quando, na eleição presidencial de 2000, a Justiça decidiu quem tinha sido o vencedor entre o democrata Al Gore e o republicano George W. Bush, que foi considerado o vitorioso.
A prevalência inédita da Justiça na vida nacional tem se multiplicado pelo mundo. Na Alemanha, coube aos juízes decidir qual deveria ser o lugar do país dentro da União Europeia. Na Turquia, antes do avanço autocrático de Recep Erdogan, os magistrados estabeleceram a natureza secular do sistema político. Há outros exemplos no Canadá, no México, na França. Por quê? Para alguns especialistas, isso tudo decorre de uma combinação: a supremacia constitucional das democracias e o predomínio da discussão sobre direitos na política e na vida cotidiana das sociedades livres.
Depois da II Guerra Mundial, juízes e tribunais foram alçados à categoria de poder político e passaram a disputar espaço com os poderes Legislativo e Executivo, este hipertrofiado após governos totalitários. A supremacia constitucional está presente hoje em mais de 100 países, mas no Brasil o fenômeno é um pouco mais significativo porque nossa Constituição é, de fato, excessivamente minuciosa. “Presenciamos uma hiperconstitucionalização por causa da nossa Constituição pretensiosa. Isso dá ao Judiciário um poder maximizado, um superempoderamento da Justiça”, diz o professor Oscar Vilhena Vieira, da FGV Direito.
A Procuradoria do Distrito Federal tem uma advogada-robô, a “Doutora Luzia”, que agiliza cobranças judiciais
A situação transferiu à Justiça parte do poder político decisório típico de autoridades eleitas pelo voto popular. “Estamos no limite do equilíbrio entre os poderes”, afirma o ministro Alexandre de Moraes, o mais recente membro do STF. “O Supremo deveria escolher o que julga, centralizar-se como poder moderador e apenas resolver crises.” De acordo com os ministros da Corte, esse é o desafio imediato para o futuro. Há outros.
Dois anos antes da promulgação da atual Constituição, o hoje ministro do Supremo Luís Roberto Barroso integrou um grupo de professores brasileiros em viagem aos Estados Unidos. Corria o ano de 1986. A comitiva iria conhecer o mais avançado aparelho de comunicação da época. “Era um fax, que ocupava toda uma sala”, recorda. No ano seguinte, o equipamento se tornou presença certa nas principais repartições públicas brasileiras. Barroso traça um paralelo: “A Igreja, as Forças Armadas e o Judiciário não são como a tecnologia. Eles mudam com lentidão”. Existem alguns experimentos para agilizar a Justiça e aproximá-la da população. Na Turquia, o sistema judicial permite que advogados e cidadãos encaminhem informações, paguem custas processuais e arquivem casos em qualquer lugar do país. Desde 2017, a Colúmbia Britânica, a terceira maior província do Canadá, tem um tribunal on-line para decidir processos sobre disputas de propriedades de pequeno valor, dispensando as partes de viajarem para julgamentos na Corte suprema. O chamado “e-Judiciary” tem bons resultados em vários países.
Especialistas estimam que, no médio prazo no Brasil e no mundo, áreas mecânicas da produção da Justiça, como o cálculo de indenizações, danos morais e multas, serão dominadas por máquinas, o que desafogará a montanha de processos sob responsabilidade dos juízes. Os magistrados poderão usar técnicas de inteligência artificial para saber, por exemplo, como todo o sistema judiciário julgou e decidiu determinado tema e qual a média de indenizações daquelas demandas. Processos virtuais serão aplicados para encurtar distâncias e cortar custos, enquanto depoimentos e audiências serão feitos remotamente. Para os escritórios de advocacia, mecanismos de inteligência artificial poderão estimar o índice de sucesso de uma causa antes de apresentá-la ao tribunal, diminuindo assim o volume de questionamentos e processos. O professor escocês Richard Susskind, autor de estudos sobre o futuro do direito, é favorável a que disputas civis de baixo valor sejam tratadas por tribunais on-line desde já.
Enquanto a judicialização toma conta das democracias, existe um movimento contrário — a “desjudicialização” da vida cotidiana, que reduziria, sobretudo, a duração dos processos. No Brasil, a experiência mais proeminente é a da negociação direta, estimulada pelo próprio governo, em um endereço na internet. Seria o fim dos juízes como conhecemos hoje? “No futuro, os juízes ainda vão ter algum papel, porque é preciso certo grau de humanidade nas decisões judiciais. Mas a tendência é que a Justiça tradicional perca espaço para mediação e arbitragem”, diz o ministro Barroso.
Apesar de experimentações pontuais, a Justiça do futuro chega a passos lentos ao Brasil. Ainda hoje ministros do Supremo penam para tentar mudar regras internas e permitir mais julgamentos virtuais, em que cada magistrado apenas diz se concorda ou não com o entendimento do relator, ou ainda discutir a viabilidade de estabelecer prazos mais ou menos fixos para que cada juiz leve um determinado tema a julgamento.
Em maio passado, o STF iniciou um projeto-piloto de inteligência artificial a fim de filtrar os temas de determinados recursos. O robô Victor — assim batizado em homenagem ao ministro Victor Nunes Leal (1914-1985), cassado pelo regime militar — identifica milhares de decisões tomadas pelo colegiado em temas similares e classifica os novos processos de acordo com o entendimento consolidado. Trata-se, por ora, de uma parcela ínfima de participação na montanha de processos que sobrecarrega a Justiça brasileira.
Desde 2017, outro pequeno símbolo do Judiciário do futuro dá expediente na Procuradoria-Geral no Distrito Federal. Uma advogada-robô, a “Doutora Luzia”, idealizada por uma startup, agiliza cobranças judiciais. Ela cruza dados, avalia o andamento dos processos e aponta possíveis soluções para as contendas. “No futuro, certas áreas do direito poderão prescindir do aparato humano e adotar instrumentos tecnológicos, como na aplicação de multas e na fiscalização tributária”, prevê o professor Oscar Vilhena. Haveria perspectivas promissoras no futuro também para a área penal? “Salvo uma mudança substancial na condição humana, não se poderá prescindir nem da Justiça nem dos juízes”, diz Vilhena. Trata-se de um aspecto fundamental, pois a Justiça não precisa nem deve ser exemplar ou implacável. Sua natureza é ser generosa, como a condição humana sugere, mas que continue valendo tanto para os pequenos e pobres quanto para os poderosos.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601