Em 2013, na pré-história da civilização digital de hoje, e foi outro dia, o dicionário Oxford escolheu a palavra selfie, em inglês, como o vocábulo do ano. Era o destino natural de uma obsessão — em apenas um ano, antes da edição daquele pai dos burros, registrara-se um aumento de 17 000% no uso do termo, um estrondo. Os organizadores do volume chegaram até a pedir desculpas, porque não se tratava de nenhuma grande novidade, aquelas seis letras juntas já vinham sendo pronunciadas havia algum tempo. “A palavra do ano não precisa necessariamente ter sido criada nos últimos doze meses e não precisa ser uma palavra que durará por um bom tempo”, justificou Judy Pearsall, diretora editorial do Oxford.
Não há dúvida de que o termo selfie, s-e-l-f-i-e, será pronunciado ainda por muito tempo pela boca de qualquer ser humano que tenha um smartphone (são 7,8 bilhões de linhas de aparelhos em 2018). E sua origem, na condição de “uma fotografia que uma pessoa faz de si mesma”, vem de priscas eras. A Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em Washington, guarda a primeira selfie de que se tem notícia, de 1839, tirada por Robert Cornelius, estudioso da fotografia que ficou pelo menos três minutos parado como uma estátua diante de um daguerreótipo. A rigor, ao decidir registrar para a posteridade o autorretrato, ele repetia as pinceladas de Rembrandt, Van Gogh, Picasso etc.
Cornelius não foi um pioneiro qualquer, e mereceria mais destaque na história dos inovadores. Foi apenas em 2003, portanto 164 anos depois daquele passo inaugural, que a Sony pôs no mercado o primeiro e mal-ajambrado smartphone com uma câmera frontal. A precocidade de Cornelius, que se inspirou em pintores que nunca deixaram de retratar a si mesmos, talvez represente um balde de água fria na ideia da selfie como algo revolucionário (não é), mas, sobretudo, indica não estarmos vivendo um fenômeno de comportamento que faz de todo ser humano um narcisista ao cubo, para quem o centro do mundo é uma selfie. Soa exagerado imaginarmos que há um novo “eu”, e que esse novo “eu” está atrelado ao ritmo dos lançamentos tecnológicos. O mal-estar da civilização é o mesmo que sempre foi, talvez esteja um tanto mais acelerado, e a busca de reconhecimento na sociedade não mudou muito.
“Pensamos que todas essas coisas, o Twitter, o Facebook, o iPhone, causaram a auto-obsessão, mas é claro que não é verdade”, diz o jornalista britânico Will Storr, autor de Selfie: How We Became So Self-Obsessed and What It’s Doing to Us (Selfie: Como Nos Tornamos Tão Auto-Obcecados e o que Isso Está Fazendo Conosco, 2017). “O problema somos nós, a civilização que construímos, uma cultura que há muitas décadas incentiva graus cada vez maiores de autoestima.”
E uma selfie, tudo somado, é apenas uma selfie — tem doses de exibicionismo, sim, é alguém querendo se mostrar a um milhão de amigos, mas não raro é apenas uma brincadeira benigna como a que fez um grupo de artistas de Hollywood na cerimônia do Oscar de 2014 (Ellen DeGeneres, Brad Pitt, Meryl Streep, Julia Roberts etc., todos com vergonha, hoje, de ter posado ao lado do assediador Kevin Spacey, mas naquela noite a casa ainda não tinha caído para o Frank Underwood de House of Cards). A mais badalada de todas as selfies foi retuitada por mais de 800 000 pessoas em apenas uma hora, e contando desde então. Era a troça de uma dúzia de atrizes e atores que cultivam o ego, ganhavam e ganham dinheiro com ele, o que não significa que sejamos todos, os comuns dos mortais, ególatras atávicos. Embora, como ensinou o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), a alteridade ocupe um lugar central, porque não há um sujeito sem o outro para espelhar-se. Um salve para as câmeras frontais, sem as quais mal sairíamos para a rua.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601