Desde que a Revolução Francesa ofereceu ao mundo os termos “esquerda” e “direita”, que em sua origem distinguiam os que defendiam os ideais revolucionários dos que apoiavam o rei, a gangorra ideológica já subiu e desceu, voltou a subir e descer — e continua a subir e descer. Nas últimas cinco décadas, a ideologia política traçou um voo ambicioso ao dividir o mundo entre esquerda e direita. Pode-se dizer que na Guerra Fria as cabeças de direita eram americanas, as de esquerda eram soviéticas e quem estivesse entre uma e outra era europeu. No maniqueísmo próprio daqueles tempos, no Brasil a direita era associada à ditadura e a esquerda, a todos os que estavam do outro lado — dos democratas genuínos aos falsos democratas.
A gangorra moveu-se depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e começou-se a especular que talvez não existissem mais direita nem esquerda. Francis Fukuyama, em O Fim da História e o Último Homem (1992), previu o triunfo definitivo da democracia liberal e da economia de mercado. No Brasil, a esquerda, orgulhosa de seu passado contra a ditadura, afirmava sua existência, enquanto a direita, envergonhada pela aliança com os militares, dizia que não fazia mais sentido trabalhar com as categorias ideológicas clássicas.
Mais uma vez a gangorra se mexeu, Fukuyama foi desmentido e o mundo retomou o embate entre direita e esquerda. Hoje, com a China disputando a hegemonia mundial com os Estados Unidos, a divisão ideológica voltou, mas sem a antiga clareza. A China é comunista na hora de sufocar ideias políticas e capitalista quando se trata de encher os bolsos. No Brasil, depois do desastre ético do PT, o quadro inverteu-se: a direita, que antes não ousava dizer seu nome, veio à tona novamente. A esquerda se retraiu.
A gangorra voltará a se movimentar? “Há razões para crer que os seres humanos precisam e vão continuar precisando das características que são associadas com esquerda e direita”, afirma John Jost, da Universidade de Nova York, no ensaio “O fim do fim da ideologia” (2006). Antonio José Barbosa, historiador da Universidade de Brasília, diz que o mundo não testemunhou a morte das ideologias, e sim a morte das ideologias do passado, como o comunismo e o fascismo. “De alguma forma, o confronto ideológico se refaz em novas bases, com novas características, mas se refaz.”
Ainda há, embora cada vez menos, nações que se dizem comunistas, como Cuba, que vem fazendo a seu modo uma abertura lenta, gradual e segura, e a Coreia do Norte, o mais exótico e ininteligível lugar do planeta. No entanto, nenhum desses países serve de modelo ou inspiração a quem quer que seja. Ao mesmo tempo, o mundo não deixou de travar o embate ideológico em outras frentes: aborto, imigração, casamento gay e até democracia, regime que antes parecia ser um consenso ocidental e agora exibe rachaduras.
“A capacidade de inventar maneiras de viver, que são as ideologias, aproxima-se do infinito”, diz o antropólogo Roberto DaMatta. Ele registra que os conceitos de esquerda e direita, embora voláteis, continuarão balizando o debate político. “Em qualquer comunidade humana vão existir esquerda e direita. Sempre vai haver disputa entre aquilo que achamos que deve permanecer e aquilo que achamos que deve mudar.” Para o antropólogo, sem utopia a própria vida perderia sentido. “Para o bem e para o mal, as ideologias persistem, mesmo que em processo permanente de transformação.”
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601