Entre as décadas de 60 e 70, movimentos que combatiam o preconceito contra os homossexuais irromperam nos Estados Unidos com força para se espalhar por outros países e começar — apenas começar — a pavimentar um cenário para a aceitação da diversidade. Os avanços foram acontecendo a passos lentos, mais vagarosos ainda no Brasil, até que definições convencionais — homem/mulher, heterossexual/homossexual — viram-se limitadas. A sigla LGBT, que surgiu nos anos 90 para se referir a lésbicas, gays, bissexuais e travestis, expandiu-se para LGBTTTIS (agregando transexuais, transgêneros, intersexuais e simpatizantes), ou ainda LGBTQQICAPF2K+ (o 2 é de “dois espíritos”). Quando foi criado, há seis anos, o aplicativo de encontros Tinder dava ao usuário a opção de se identificar como homem ou mulher; hoje são 37 alternativas. O Facebook oferece 56. Desde 2016, a Comissão de Direitos Humanos de Nova York reconhece 31 gêneros, assimilados nas empresas e na esfera pública. Mesmo assim, neste século XXI, muita gente prefere não se definir.
A questão de gênero não se restringe à orientação sexual, mas percorre também uma delicada linha que mescla um tanto de subjetividade e por vezes um componente de ideologia, já que se trata da maneira como cada um percebe a si mesmo e quer ser percebido em sociedade. Referência nos estudos de gênero, a filósofa americana Judith Butler defende uma posição radical, segundo a qual ninguém nasce homem ou mulher — “As pessoas aprendem a desempenhar esses papéis”, diz ela. Sua visão é que a identidade deve ser algo “livre” e “flexível”, sem rótulos. Para muitos já é. Os transgêneros, para quem o sexo biológico é um e a identidade de gênero é outra, formam um grupo de 1 milhão de pessoas no Brasil e 35 milhões no mundo. Eles não brotaram do nada: sempre existiram, só que ficavam recolhidos à sombra do estranhamento e preconceito, que ainda não se dissiparam.
Mas há uma clara mudança em marcha, empurrada pelas redes sociais e capitaneada por figuras de visibilidade como a ex-atleta americana Caitlyn Jenner, 68 anos, nascida William Bruce. Depois de três casamentos com mulheres e seis filhos e filhas (duas delas irmãs de Kim Kardashian), ela passou pelo processo de transição de sexo e de identidade — agora é transgênero —, acompanhada por milhões de seguidores no Instagram. Em 2015, apareceu glamourosa na capa da revista Vanity Fair e discursou em uma premiação do mundo esportivo americano para ajudar a romper a nuvem de rejeição a casos como o dela.
“Tenho a responsabilidade de contar minha história e fazer tudo o que puder para mudar o modo como os transexuais são vistos e tratados”, disse. No Brasil, o tema chegou às novelas na trama global A Força do Querer, em 2017. O personagem transgênero vivido pela atriz Carol Duarte era Ivana e virou Ivan sob os olhos de milhões de espectadores que fizeram a audiência explodir. “Trazer essa questão à tona é de suma importância para sua aceitação”, avalia o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas.
A ciência ainda procura respostas para o que define como “disforia de gênero”, esse desencontro entre corpo e mente. A explicação fisiológica mais aceita recai em alterações cerebrais e hormonais no feto, durante a gravidez. A hipótese é que haveria um descompasso na produção de hormônios masculinos que circulam no corpo da mãe entre a décima semana de gestação, quando se formam os órgãos genitais, e a vigésima, quando se desenvolve a região cerebral responsável pela identidade de gênero. É aí que se abriria uma janela para um cérebro masculino em corpo feminino, ou o contrário. Assimilar o novo caldeirão de gêneros vai levar tempo, não há dúvida, mas uma vitória recente aponta para um futuro longe da vala do preconceito: em junho, a Organização Mundial da Saúde decidiu excluir a transexualidade do rol dos transtornos mentais. Como ocorreu com a homossexualidade, é um passo para a normalização.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601