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‘As Montanhas se Separam’ traduz o humano com poesia

No novo filme de Zhangke Jia, as mudanças por que passa a China são menos importantes do que os desafios dos personagens diante da impossibilidade de se conectar - e permanecer conectados - a outras pessoas

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 24 jun 2016, 12h21

Quando o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss escreveu Pensamento Selvagem, publicado pela primeira vez em 1962, queria mostrar como, apesar de todas as aparentes diferenças que nos separam de índios e outros povos, somos todos iguais. A partir da comparação entre mitos e conceitos filosóficos de sociedades distintas, ele chegou à conclusão de que temos mais em comum do que julgamos – a mitologia de uma nação ameríndia, por exemplo, pode ser altamente sofisticada ao abordar questões que mobilizaram os gregos de milênios atrás. É por isso que As Montanhas se Separam, longa do chinês Zhangke Jia que entra agora em cartaz no país, é capaz de emocionar espectadores de qualquer nacionalidade. Não importa a cultura, a ideologia política, os meios materiais que se têm à mão para sobreviver. A dificuldade de nos entendermos e nos relacionarmos, e a solidão daí decorrente, são perenes: isso pega para qualquer um.

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Dividido em três partes, As Montanhas se Separam acompanha a trajetória de Shen Tao (Tao Zhao) da juventude, quando se vê disputada por dois amigos, Zhang Jinsheng (Yi Zhang) e Liang Jangjung ou Liangzi (Jing Dong Liang), à idade madura, quando está apartada de Jinsheng, com quem se casa, e também do filho que eles têm, Zhang Daole ou Dollar (Zijian Dong). Um trajeto rumo ao isolamento — seja pelas separações seja pelas mortes que naturalmente ocorrem pelo caminho.

O filme tem início em 1999, quando Jinsheng enriquece com seu posto de gasolina e resolve comprar a mina onde trabalha Liangzi, sempre sujeito à dureza e à insalubridade que fazem parte do trabalho como mineiro. A ascensão econômica opera transformações em Jinsheng, que se torna arrogante, agressivo e cada vez mais obcecado por dinheiro — apelidar o filho com o nome da moeda americana é um traço caricato dessa transformação. Jinsheng, por isso, poderia ser lido como uma crítica ao capitalismo que engendra mudanças profundas na China, cada vez mais distante de seu rico passado milenar, e essa seria uma crítica pobre. Felizmente, a personagem de Tao Zhao, que já trabalhou com Zhangke Jia em Um Toque de Pecado, também lançado no Brasil, está lá para redimir o diretor. Do casamento com Jinsheng, celebrado ainda na primeira parte do longa para desgosto e partida de Liangzi, ela herda o posto de gasolina e os recursos financeiros necessários para uma vida confortável. Sua passagem de trabalhadora a capitalista, porém, não faz dela o protótipo de um monstro.

Na segunda parte, quinze anos depois, Shen Tao e Jinsheng já estão separados. Liangzi volta, como para dar a Tao uma chance de reparação por ter preterido o amigo, agora doente pelos anos de trabalho pesado debaixo da terra. Dólar, o filho de Tao, mora com o pai em outra região da China, mas vai visitar a mãe por ocasião de um funeral. O encontro de mãe e filho é tenso e marcado por silêncios. Mãe e filho já são, então, quase estranhos um ao outro.

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Essa qualidade de estranhos — ou estrangeiros — se acentua na terceira parte, que se passa quase toda na Austrália, para onde Jinsheng migra com o filho, em 2025. Shen Tao está presente nesse capítulo, mesmo que indiretamente, por citações, mas o estranhamento principal aqui é o que cresce entre pai e filho. Não se sabe ao certo há quanto tempo Dólar e Jinsheng deixaram a China, mas o garoto precisa estudar chinês para tentar compreender o que diz o pai, que não aprendeu inglês e permanece ilhado na sociedade australiana e dentro da própria casa. A comunicação, truncada, se dá pelo tradutor do Google, onde Jinsheng despeja as mensagens que o filho lhe envia, e quase sempre traduz mal o que o menino tenta dizer.

Mais uma vez, seria um erro entender as atitudes de Jinsheng como uma crítica de Zhangke Jia aos chineses de hoje — e, mais especificamente, aos que emigram, como se o destino de todos fosse a inadequação à cultura ocidental. A presença de Go West, na versão do Pet Shop Boys, pode favorecer essa leitura, que é uma entre as tantas possíveis, mas o próprio diretor rebateu essa interpretação em coletiva de imprensa no Festival de Cannes, onde o filme foi exibido em 2015. Segundo Jia, Go West está lá porque marcou a sua juventude — a música foi lançada pelo Village People nos anos 1970 — e menos pelo West do que pelo Go. “Para mim, a palavra mais importante nessa música não é ‘Ocidente’, mas ‘Vá'”, disse.

E, mais uma vez, há um personagem para fazer contraponto a Jinsheng. Se o pai permanece um estrangeiro na Austrália, Dólar já é um estrangeiro para a China — e para o próprio pai. A impossibilidade de comunicação entre eles, que pode ser vista como metáfora para tantos outros relacionamentos, é uma das questões universais que Zhangke Jia explora no filme. E Jia traduz esse impasse, assim como as separações, as mortes e a solidão que se sucedem ao longo do filme, de forma também universal, muito mais eficaz do que o Google Translate: com poesia. As Montanhas se Separam é pontuado de cenas inspiradas desde o começo, com uma sequência de dança ao som de Go West. Nada mais apropriado que uma linguagem universal como a poética para tratar de temas universais. Para citar um outro livro de antropologia, As Montanhas se Separam é um longa sobre a inconstância e a inquietude da alma selvagem. A nossa.

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