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Vida de artista: as histórias de Jean Boghici

Matéria de VEJA Rio traça perfil do marchand, que foi amigo de Di Cavalcanti, seu vizinho em Copacabana. “Era um dos únicos comerciantes com quem o Di se dava bem”, diz o colecionador Lucien Finkelstein. Convidado a responder a perguntas sobre a vida do pintor Van Gogh no programa 'O Céu É o Limite', virou um personagem popular

Por Lívia de Almeida e Fátima Sá
14 ago 2012, 21h17

Quando a Galeria Relevo acabou, em 1970, Jean Boghici preferiu ficar com o quadro Samba, de Di Cavalcanti, a levar para casa um lote de quarenta quadros

Texto publicado em VEJA Rio em abril de 2000

Bem-falante, o jovem Jean Boghici chegou ao Rio em 1949. Era mais um imigrante ilegal que desembarcava por aqui, fugindo da Europa devastada pela guerra. Saiu da casa dos pais, na Romênia, vagou pelos territórios ocupados pelos soviéticos, passando-se por judeu, tornou-se amigo do escritor americano James Baldwin em Paris. Já acumulara boa dose de experiência ao chegar e descobrir o jeitinho brasileiro. Refugiou-se em Belo Horizonte, onde a fiscalização de estrangeiros era menos rigorosa, e, em pouco tempo, graças a seus dotes de desenhista e caricaturista, estava enturmado com boêmios e intelectuais. O passo seguinte foi procurar o melhor professor de arte da cidade, o pintor Alberto da Veiga Guignard. Na pensão em que o mestre morava, encontrou-o concentrado na execução do retrato de um menino vestido para a primeira comunhão. “Fiquei tão impressionado com a força daquela obra que pedi que ele pintasse um retrato meu para presentear minha família na Romênia”, recorda-se 51 anos depois. O projeto do quadro não prosperou, trocado por um terno novo, sapatos e cinto de couro de crocodilo, prioridades perfeitamente desculpáveis em um rapaz de 21 anos. A admiração pela obra de Guignard, no entanto, não diminuiu com o passar dos anos. E, mais de meio século após aquele primeiro contato, Boghici assina, no Museu Nacional de Belas Artes, a curadoria da maior exposição dedicada ao pintor fluminense que se apaixonou por Minas Gerais. A mostra O Humanismo Lírico de Guignard é o resultado de cinco anos de garimpagem obsessiva atrás das melhores obras do mestre. “Guignard foi o primeiro grande artista brasileiro que conheci. É um mestre cuja obra precisa ser mais divulgada para o grande público”, afirma.

Do primeiro encontro à inauguração da mostra, na quinta-feira, Jean Boghici descobriu o país e foi descoberto por ele. Trabalhou na companhia ferroviária, foi técnico de som da boate Vogue, onde ficou amigo de Ibrahim Sued, foi vitrinista da Ducal. Entre uma e outra atividade, tomava aulas de pintura e se relacionava com artistas do porte de Pancetti e Milton Dacosta. Namorou Lygia Clark e, com seu talento com ferramentas, ajudou a artista plástica a cortar muitos Bichos em metal. Foi amigo de Di Cavalcanti, seu vizinho em Copacabana. “Era um dos únicos comerciantes com quem o Di se dava bem”, diz o colecionador Lucien Finkelstein. Pouco depois de um desastre de moto, em 1958, sua vida começou a mudar. Convidado a responder a perguntas sobre a vida do pintor Van Gogh no programa O Céu É o Limite, sucesso televisivo da época, Boghici virou um personagem popular. “As pessoas me paravam na rua para saber se eu ia desistir ou continuar”, recorda-se. Desistir significava ir embora do programa com todo o dinheiro que já havia ganho. Continuar, arriscar tudo em troca de ganhar um pouco mais. Desistiu. Ganhou o equivalente a 200.000 dólares da época. Comprou o apartamento onde mora até hoje em Copacabana, um carro, viajou. De volta, associou-se a Jonas Prochovnick e Erimar Carneiro para abrir a Galeria Relevo, em 1960.

Boghici se tornou um dos mais importantes negociantes de arte da cidade comendo pelas beiradas. Os principais artistas do país tinham contratos com outras galerias. Portinari e Lygia expunham na Bonino. DaCosta e Guignard trabalhavam com Franco Terranova. “Comecei a correr atrás de obras antigas de artistas como Guignard e Di Cavalcanti. Ao mesmo tempo, percebi que havia gente nova despontando”, conta. Na Relevo, Boghici lançou Antonio Dias, Rubens Gerchman, Vanda Pimentel, Dionísio Del Santo, entre outros. “Em 1963, Boghici me convenceu a comprar uma obra do Antonio Dias. Ele foi um dos caras que me ensinaram a apostar em gente nova”, diz o marchand Thomas Cohn, que lançou nomes da Geração 80, como Leonílson, Daniel Senise e Bia Milhazes. A Relevo era um ponto de encontro de jovens intelectuais da época e de gente influente que gostava de arte, como o empresário Roberto Marinho e Luís Antônio de Almeida Braga. “A galeria ficava em Copacabana. O Rio de Janeiro inteiro passava pela minha porta”, recorda-se Boghici. Além de suas atividades na Relevo, o marchand esteve por trás de duas das mais importantes exposições de arte contemporânea dos anos 60: Opinião 65 e 66, que levaram ao MAM novos brasileiros e artistas ascendentes nos Estados Unidos e na Espanha, como Roy Adzak e Juan Genoves.

No final dos anos 60, ele decidiu deixar o Brasil. Foi para Paris, com a mulher, a francesa Geneviéve. Entre uma aula e outra de história da arte no Louvre, perseguia obras de brasileiros que andavam perdidas pela Europa. “Graças a ele, muitos trabalhos de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro acabaram voltando para o país”, garante o diretor da Bolsa de Artes do Rio de Janeiro, Jones Bergamin. Boghici também apostou em nomes pouco conhecidos no Brasil da época, como o uruguaio Torres-Garcia, a portuguesa Vieira da Silva e Calder. No final dos anos 70, ele voltou ao país e abriu a galeria Jean Boghici em Ipanema. Os artistas que lançou a partir daí, como o hiper-realista Jorge Eduardo e o escultor Athayde, não chegaram a estourar. “A novíssima arte contemporânea não é o forte dele, nem precisa ser”, diz o colecionador Gilberto Chateaubriand. “O que me interessa mesmo é o trabalho dele com os históricos”, afirma o marchand Thomas Cohn. Boghici reage: “É verdade que eu não gostaria de ter muitas coisas que o Thomas Cohn vende, mas tenho certeza de que a recíproca não é verdadeira”.

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Disputas artísticas à parte, a unanimidade impera diante do talento do marchand para criar retrospectivas imperdíveis. Foi assim com Vicente do Rego Monteiro, Glauco Rodrigues, Cícero Dias – com direito a um magnífico volume sobre a obra do artista -, Maria Martins e agora Guignard. “É um perfeccionista”, diz o colecionador Sérgio Fadel, que está emprestando quinze telas para a mostra Guignard. A viabilização da exposição, aliás, exigiu toda a tenacidade do curador. Conseguir o apoio de empresas que apostassem em um artista nacional e topassem investir 1 milhão de reais na realização da mostra e na publicação do belíssimo catálogo foi uma batalha. Outra foi convencer os colecionadores a ceder suas preciosidades para ser exibidas no Rio e em São Paulo. Alguns só concordaram com a garantia de que receberiam réplicas para não desfalcar suas paredes. “Mesmo assim, houve quem desistisse na última hora, com o caminhão parado na porta de casa”, diz Marta Fadel, filha de Sérgio e vice-presidente da Associação dos Amigos do MNBA.

Uma vitória expressiva foi a obtenção da série completa de catorze óleos sobre madeira que compõem a Via Sacra produzida por Guignard em 1960. A obra tem uma história controvertida. Foi encomendada por dona Elba Sette Câmara, primeira-dama da Guanabara e ex-aluna do pintor, para enfeitar um projeto de Oscar Niemeyer, a Capela São Daniel, em Manguinhos. Seis anos depois da inauguração, com a capela em péssimo estado de conservação, dona Elba começou a lutar por seu tombamento. Em 1967, o patrimônio estadual tombou o prédio com todo seu acervo iconográfico. Um ano depois, a documentação do atual Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural revela que as catorze pinturas foram retiradas para uma exposição em Minas Gerais. O que aconteceu depois não está documentado. Hoje, metade das obras está com a embaixatriz Lúcia Flecha Lima, no Palácio Doria Pamphili, em Roma. As outras sete se encontram, desde os anos 70, com o banqueiro Antonio José Carneiro. Mais de trinta anos após ser retiradas da capela, o destino do conjunto volta a preocupar a Arquidiocese do Rio de Janeiro. “Sabemos que, a rigor, as obras pertencem à Igreja. Estamos apelando aos colecionadores para que nos procurem para esclarecer a história de uma vez por todas. Levar esse assunto à Polícia ou à Justiça seria embaraçoso para todas as partes”, afirma Antonio Passos, chefe do departamento jurídico da arquidiocese.

Dificuldades de outra ordem envolveram a vinda do famoso Vaso de Flores com Natureza Morta, arrematado por 761.500 dólares pelo deputado federal Ronaldo Cézar Coelho, em um leilão da Christie’s, no ano passado. Primeiro, sua participação esbarrou em questões fiscais. Para trazer o quadro definitivamente para o Brasil, Ronaldo teria de desembolsar 200 000 dólares em impostos aduaneiros. Por isso, a obra só está no país em caráter temporário. “Enquanto a legislação fiscal não mudar, o quadro fica em meu apartamento de Nova York”, diz Ronaldo. No final da semana passada, com o quadro ainda na alfândega, aguardando liberação, surgiu outro problema. Este, ligado à vaidade. Ronaldo ameaçou retirar seu quadro da mostra quando soube que ele não estaria na contracapa do catálogo da exposição. Boghici garantiu que tudo seria resolvido e que o quadro estará na mostra. Outros tesouros não precisaram de tanto esforço para ficar em evidência. Gêmeas, de 1940, premiado no Salão Nacional, pertenceu ao Ministério de Educação e há sete anos está no Museu Nacional de Belas Artes. Outro dos 25 retratos selecionados por Boghici é o da própria diretora do museu, Heloísa Lustosa, pintado em Ouro Preto, no final dos anos 40. “A mostra demorou a sair porque não queríamos apenas uma exposição Guignard. Queríamos a exposição Guignard”, diz ela. Jean Boghici fez jus às expectativas. O público agradece.

Sacadas de mestre – Quando a Galeria Relevo acabou, em 1970, Jean Boghici preferiu ficar com o quadro Samba, de Di Cavalcanti, a levar para casa um lote de quarenta quadros. Anos depois, o colecionador Lucien Finkelstein quis comprar a obra. Boghici deu um preço altíssimo. Semanas depois, Finkelstein voltou a falar com ele. O preço já subira. “Cada vez que eu falava com o Jean, o quadro ficava mais caro”, conta Finkelstein, que percebeu que o marchand não queria desfazer-se da obra. O quadro, avaliado atualmente em mais de 2 milhões de reais, é considerado uma das dez obras mais importantes da arte brasileira. Quando vivia em Paris, na década de 70, Boghici encantou-se com a obra do uruguaio Joaquín Torres-Garcia, ainda pouco conhecida no Brasil. Ao voltar ao país, em 1978, trouxe dezenas de quadros do pioneiro do construtivismo. Emprestou quatro para a nefanda exposição no Museu de Arte Moderna, quando um incêndio transformou em cinzas 86 obras de Torres-Garcia. Um ano depois, Boghici inaugurou sua galeria com a exibição de mais de quarenta pinturas do uruguaio, que hoje é um dos artistas sul-americanos mais valorizados no mercado internacional.

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