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“A moda está louca para se libertar da roupa”, diz Ronaldo Fraga

Estilista que desfila na São Paulo Fashion Week fala sobre parcerias fora da passarela, o preconceito que o brasileiro ainda tem com o setor e bate o martelo: “moda é cultura”

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 31 mar 2014, 09h37

Nascido em Belo Horizonte, Minas Gerais, “quarenta e uns anos atrás”, como diz seu blog, o irreverente estilista Ronaldo Fraga diz que nunca almejou a carreira de moda. Entrou sem querer no ramo por saber desenhar, conseguiu um emprego e depois ganhou um concurso que lhe rendeu uma bolsa de estudos em Nova York. A profissão acidental tomou forma em 1996, com a coleção Eu Amo Coração de Galinha, seguida, um ano depois, por Em Nome do Bispo, inspirada no artista sergipano Arthur Bispo do Rosário.

Desde então, é fácil perceber em seus traços a presença constante de elementos da cultura brasileira, inspiração que delineou a marca que leva seu nome e o destacou no metier da moda como um estilista “cult”. Com quase vinte anos de profissão, Fraga já homenageou em seus tecidos os escritores Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, a estilista Zuzu Angel, a cantora Nara leão e até o rio São Francisco. “Só tem uma coisa que me move, que se eu não fosse estilista eu continuaria a perseguir: meu amor pela cultura brasileira”, diz. “Por isso, minha cartilha sempre foi essa, fazer a moda como um vetor cultural.”

Em tempos em que ainda se discute no Brasil se moda é ou não cultura e a indústria têxtil se encontra em crise, face à concorrência desleal de países como a China, o estilista lamenta o descaso do país em valorizar a produção nacional e afirma que, apesar das dificuldades, mantém sua produção em solo nacional. Mesmo que isso custe parte da estrutura de sua empresa, como custou. “Somos resistentes, somos otimistas só de raiva”, afirma.

Figurinha carimbada na São Paulo Fashion Week, que abre sua 37ª edição nesta segunda-feira, Fraga vai desfilar sua coleção de verão 2015 no dia 2 de abril, com o tema Ronaldo Fraga em O Caderno Secreto de Cândido Portinari. A data é de longe a mais badalada da semana de moda paulistana. No mesmo dia desfilam também outros estilistas-estrela, como Fause Haten e Gloria Coelho, e a top model Gisele Bündchen para a grife Colcci.

Confira abaixo a entrevista concedida pelo estilista ao site de VEJA.

Croquis da coleção 'Ronaldo Fraga em O Caderno Secreto de Cândido Portinari'
Croquis da coleção ‘Ronaldo Fraga em O Caderno Secreto de Cândido Portinari’ (VEJA)

Por que escolheu Cândido Portinari como inspiração para sua nova coleção? O Portinari inspira de diversas formas. Não só sua obra, mas também a trajetória. Filho de camponeses, ele sai do interior de São Paulo, passa por algumas grandes cidades e em Paris cria sua identidade. Lá ele decide sobre o que vai pintar o resto da vida: o Brasil rural, o povo dele. Ele volta ao Brasil e até o dia de sua morte ele retrata o povo brasileiro, com suas festas e suas mazelas, sempre sob a ótica da infância. Isso é fascinante. E seu trabalho é extremamente têxtil, todo quadro dele tem uma roupa escondida.

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Como se deu o processo de pesquisa da obra até a roupa? Quando a inspiração para uma coleção é a literatura tudo fica mais fácil, pois você é o dono da imagem. Mas a obra de Portinari está pronta, construída. Quando comecei a criar pensei: “Por que fui mexer com isso?”. Sempre que você olha um quadro dele dá vontade de simplesmente vesti-lo. Porém, eu tive o pudor de fazer diferente. Então não reproduzi a obra dele nas roupas, minha inspiração partiu dos cadernos de estudo de seus desenhos. O filho dele, João Cândido Portinari, me apoiou em tudo que precisei, liberou o uso das imagens e me deu acesso a toda sua obra.

No ano passado, quando o estilista Pedro Lourenço conseguiu aprovação para captar recursos pela Lei Rouanet para um desfile em Paris, levantou-se novamente a discussão sobre se a moda é arte. O que o senhor pensa sobre isso? Estamos anos atrasados nesse sentido. Em muitos países a moda já é entendida como cultura. Ela faz parte dos novos vetores de cultura, como a arquitetura, a gastronomia e o design gráfico. Eu fico por entender aquela controvérsia. Acho pertinente o momento atual, que joga luz na obra da Zuzu Angel. Ela conseguiu com a moda muitas coisas que os intelectuais não conseguiram na ditadura. Existe uma ignorância e um preconceito contra o setor. É um vetor que emprega? Sim, como todos os da cultura. Que movimenta dinheiro? Sim, como o cinema. Mas é sem dúvida um vetor cultural. Muito da memória e da cultura de um país é entendida pela forma como as pessoas moram, comem e vestem em determinada época.

Acredita que o preconceito com a moda brasileira pode estar ligado a atual crise na indústria têxtil? A cultura de moda no Brasil está adolescendo. Já temos uma identidade de moda. O estrangeiro bate o olho na nossa roupa e sabe que é brasileira. Vivemos tempos adversos, nossa indústria têxtil padece com concorrência desleal que vem de fora, mas somos resistentes, somos otimistas só de raiva (risos).

Como tem encarado a crise? É uma crise muito triste, perdemos grandes tecelagens, uma geração de empregos, de renda, de retorno econômico. E perdemos parte da cultura brasileira. No século XX, o Brasil tinha o poder da indústria têxtil, perder isso foi um pecado. Mas também é um setor que não tem articulação política alguma, estamos aprendendo.

Sua produção é toda feita no Brasil? Faço tudo no Brasil. Minha estrutura é pequena. Já foi maior, mas tive que diminuir justamente para sobreviver. No Brasil, ou você é pequeno ou gigante. Quando comecei a fazer coleção infantil, por exemplo, tive que escolher entre ela e a masculina. Por isso, hoje, o masculino é um coadjuvante na loja, mas não vai mais para desfiles.

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Sua marca fala muito de brasilidade, com estampas e cores fortes, inspirações nacionais. Acha que seu diferencial é o que sustenta a Ronaldo Fraga? Nunca me achei ‘A’ diferença, só tem uma coisa que me move, que se eu não fosse estilista eu continuaria a perseguir: meu amor pela cultura brasileira. O primeiro contato que eu tive com a moda foi lendo. Eu lia muita literatura política e, em um livro do Zuenir Ventura, li sobre a Zuzu Angel. Uma figura marcante na moda e na política. Nunca pensei que com a moda você pudesse falar outras coisas que não fosse a roupa, a estação. Por isso, minha cartilha sempre foi essa, fazer a moda como um vetor cultural.

Muitos estilistas fazem parcerias com lojas de fast fashion, mas você geralmente se associa a marcas de outros produtos, como sapatos, chinelos, óculos, papel higiênico. Por que essa escolha? Eu digo que a moda está louca para se libertar da roupa. E ela faz isso quando estabelece diálogo com outras frentes. Colocar seu estilo ao serviço da indústria é fascinante. Essas parcerias colocam a moda no lugar dela, que é a contemporaneidade, o cotidiano. Agora fiz uma parceria com uma marca de cosméticos masculina francesa. Por enquanto ainda não posso dar mais detalhes.

No ano passado, seu desfile com modelos usando cabelo com palha de aço causou controvérsia. Como o senhor responde a isso hoje? Para mim, essa história evidenciou o preconceito que o brasileiro tem quando o assunto é moda. O tema do meu desfile era o futebol dos anos 1920 e 1930, em nenhum momento falei que era algo relacionado aos negros. Se aquilo estivesse no teatro, em uma mostra de arte ou no cinema teria passado batido. Mas na moda não. Na moda não pode fazer esse tipo de coisa. Em terra de míopes, o caso vira o que virou.

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