Promessa furada: a decepção em torno da picape Cybertruck, da Tesla
Exaltada como veículo capaz de enfrentar o apocalipse, ela corre o risco de entrar na longa lista de modelos que frustraram o mercado
Quando apresentou ao mundo aquele que seria o principal lançamento futuro de sua montadora, o empresário Elon Musk, conhecido pelas declarações bombásticas nem sempre fundamentadas, prometeu que o veículo elétrico seria feito para sobreviver a uma hecatombe. O visual parecia saído da ficção científica, com linhas retas agressivas, um gigantesco para-brisa e uma caçamba com proteção retrátil. Segundo o dono da Tesla, o Cybertruck, seu nome de batismo, rodaria quase 800 quilômetros sem precisar recarregar, levaria 1 tonelada e meia e aguentaria uma saraivada de balas. No final de 2023, após inúmeros atrasos, a esquisita picape começou a ser entregue a seus primeiros compradores. E aí deu-se a largada a uma longa lista de decepções.
A autonomia para rodar não era das melhores, a capacidade de carga havia sido reduzida e até os preços originalmente divulgados subiram de forma substancial. Nos meses seguintes, o veículo continuou a ser produzido de forma lenta e a ser enviado para poucos clientes, que passaram a reclamar da qualidade do acabamento. Agora, a maioria foi convocada para um recall — o quarto em seis meses —, desta vez para consertar um defeito em um trivial limpador. Menos mau — um ajuste anterior eliminou uma falha que poderia fazer com que o acelerador ficasse travado, deixando o blindado de quase 3 toneladas sem controle. A Tesla promete resolver os problemas até 2025, mas a Cybertruck corre o risco de entrar no vasto rol de modelos que prometeram muito, decepcionaram e entraram para a história dos fracassos automotivos.
O exemplo mais emblemático de promessa furada, sem dúvida, é o DeLorean. O veículo esportivo foi apresentado por John DeLorean, executivo com passagens exitosas pela Pontiac e pela Chevrolet, como a grande estreia de sua própria montadora, a DMC, em meados da década de 1970. Além do design pouco convencional, com a carcaça de aço inoxidável e portas no estilo asa de gaivota, abrindo para cima, o modelo teria performance de ponta. A produção seria feita na Irlanda do Norte, graças a um milionário incentivo do governo local. Mas a fabricação atrasou, o carro teve problemas de qualidade e, ao chegar finalmente ao mercado, em 1981, não entregou o prometido e recebeu críticas pouco empolgantes. Com dívidas crescentes, John DeLorean foi pego em um esquema para traficar 100 quilos de cocaína. Acabou inocentado no tribunal, mas a DMC decretou falência em 1982 e encerrou as atividades. Quando o veículo apareceu no filme De Volta para o Futuro, em 1985, já estava fora do mercado e foi apenas graças ao clássico da ficção que ganhou a aura cult presente até hoje.
Em alguns casos, não são só problemas de produção que comprometem os planos das empresas. A brasileira Gurgel Motores tinha o sonho de produzir um carro 100% nacional — e conseguiu a proeza em 1987, com o BR-800. Durante 27 anos de existência, colocou no mercado mais de 30 000 veículos. Ficou conhecida pelos utilitários, como o jipe Xavante X-12, e foi pioneira em apostar nos elétricos, mais de quarenta anos atrás. Lançou modelos pequenos, para uso urbano, e criou inovações como carrocerias de fibra de vidro. No início dos anos 1990, no entanto, foi à bancarrota após ser prejudicada pela entrada dos importados e pela redução de impostos para veículos de motores menos potentes. “A Gurgel foi inovadora. Carros como o BR-800 continham elementos pioneiros para a época”, afirma o consultor automotivo Milad Kalume Neto. “Mas a competição e as decisões políticas foram pressão demais para ela.”
No cenário atual, com a quantidade de montadoras apostando em elétricos, é de esperar que novos fracassos e decepções aconteçam. Já houve baixas. A americana Coda Automotive surgiu em 2009 com o objetivo de produzir carros movidos a energia limpa. Fabricou um único modelo, um sedã de quatro portas com autonomia de apenas 140 quilômetros, em 2012. No ano seguinte, a linha de montagem cessou e a marca capotou. De boas intenções e ideias ousadas a história da mobilidade em quatro rodas está cheia. Mas é preciso mais do que um design atraente e um CEO midiático para transformar um projeto em sucesso verdadeiro — e perene — de vendas.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900