Por que as ‘centrais multimídia’ de veículos viraram motivo de preocupação
A decisão de uma reputada agência europeia, ao frear o uso exagerado da tecnologia, encaminha uma dúvida: o que será dos carros sem motorista?
É grande a lista de equipamentos levados à obsolescência com as novas tecnologias. No universo dos carros, os veículos elétricos parecem decretar o fim do ronco barulhento dos motores a combustão. A expansão a bordo de telas de touch screen, como as dos tablets e smartphones, a um toque de dedo, anunciam a morte dos indicadores analógicos. Ao visual futurista das chamadas “centrais multimídia”, soma-se uma necessidade econômica: as montadoras gastam menos ao reunir os comandos em um único painel digital, sem a pletora de botões e alavancas que nos conduziram até aqui. Tudo muito prático e bonito, em ritmo acelerado a caminho do amanhã, até um órgão de regulamentação europeu indicar a marcha a ré.
O European New Car Assessment Programme (Euro NCAP), imbuído de analisar a segurança dos veículos lançados no mercado da Europa, decidiu que a partir de janeiro de 2026 exigirá controles físicos nos carros que circulam pelo continente — sem os quais não serão concedidas as avaliações de cinco estrelas, reconhecimento máximo de qualidade. A motivação soa nítida. “O uso excessivo de telas sensíveis ao toque é um problema, com quase todos os fabricantes de veículos transferindo os principais controles para telas, obrigando os motoristas a tirar os olhos da estrada, distraídos”, disse Matthew Avery, diretor de desenvolvimento estratégico do Euro NCAP, ao The Times. Pode ser o início do fim de uma era da civilização que mal começou.
A participação no teste de segurança sugerido pelo Euro NCAP não é obrigatória. Muitas montadoras, contudo, usam os resultados positivos como estratégia para aumentar as vendas. A primeira leva de exigências forçará dispositivos mecânicos — como os de antigamente — para o pisca-alerta, os limpadores do para-brisa e a buzina. E lá vamos nós de volta para o futuro, em movimento comum, de namoro com a ciência de ponta e alguma piscadela para a nostalgia.
As vantagens das telas sensíveis ao toque são inegáveis e têm história. A ideia original foi registrada em 1965 pelo engenheiro britânico Eric Arthur Johnson. Contudo, a tecnologia só passou a ser produzida em larga escala a partir de 2007. Naquele ano, Steve Jobs (1955-2011) apresentou o primeiro iPhone, cuja tela já não pede descrição, dada a onipresença. No começo, o movimento de pinça com os dedos fazia aproximar mapas e fotos de modo um tantinho tosco — mas nada como o passar do tempo…
Desde aquela sacada inicial, obsessão de Jobs, as telas se infiltraram em cada elemento da vida cotidiana, dos totens para pedir um lanche nas redes de fast-food a comandos dentro de quartos de hotéis. Mas por que, afinal de contas, a indústria automotiva é a primeira a sentir o cheiro de recuo? Há, por óbvio, o zelo pela vida, por serem como armas que podem matar caso algo dê muito errado no controle das máquinas sobre quatro rodas. Mas brotou também algum exagero, dada a oferta de facilidades incluídas na touch screen. “Acaba-se perdendo um pouco a mão”, resume Milad Kalume Neto, da consultoria automotiva Jato Dynamics. No final dos anos 1980 e começo de 1990, deu-se a primeira grande adaptação, movida a eletricidade, para baixar e levantar os vidros, mas também para ativar o desembaçador e o ar-condicionado. Eram mudanças tecnológicas bem-vindas, que pegaram e estão até hoje por aí. No mergulho multimídia, contudo, a ambição talvez tenha ido longe demais, como mostra o recente freio.
Nenhum outro fabricante de veículos foi tão radical na dependência das centrais multimídia quanto a Tesla. Em setembro do ano passado, a montadora do fanfarrão e faz-tudo Elon Musk apresentou a nova versão do luxuoso sedã Model 3. A alavanca da seta foi abolida, e o motorista precisa usar dois minúsculos botões no volante para sinalizar se pretende fazer uma conversão. Até o câmbio automático é acionado por toques digitais. O sistema é adotado também na nova picape da empresa, a Cybertruck. Nem mesmo os áulicos que cercam Musk, como a um rei que precise de bobos da corte, aprovaram os retoques, exagerada guinada em hábitos de direção estabelecidos desde sempre. Não por acaso, na Noruega, onde modelos da Tesla são usados até mesmo em autoescolas, os botões de tela para informar o lado para onde se pretende virar, à esquerda ou à direita, foram julgados perigosos e banidos.
O espanto do novo exigindo uma parada para acerto parece encaminhar um paradoxo, ao interromper o trajeto natural dos badalados carros autônomos. Se eles pressupõem a saída de cena de nós, seres humanos, o que dizer das traquitanas manuais? E, no entanto, apesar do susto imposto pela exigência de cuidados manuais de uma decisiva instituição europeia, os laboratórios de inovação dos autônomos seguem firmes e fortes. A Tesla, aliás, acabou de divulgar uma nova atualização de seu sistema operacional, que permite o teste em pista com o piloto automático mais avançado que existe, ainda distante de certezas. Em teoria, o sistema do automóvel sem motorista seria capaz de acionar a seta, frear, acelerar e desviar de outros veículos e pedestres sem a participação de gente de carne e osso. E tem mais: os táxis-robôs da Zoox, empresa que pertence à Amazon, e da Waymo, da Alphabet, dona do Google, já circulam em cidades americanas de modo experimental. Em breve, devem rodar em áreas mais amplas, em velocidades mais altas e até à noite. Mas antes é preciso resolver a contradição levada à ribalta: é para haver menos ou mais interação das mãos em carros? O futuro será fascinante.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885