Performances e festivais que destacam trilhas sinfônicas de videogames ganham força
Eles atraem um novo público para as salas de concerto

A compositora e regente irlandesa Eímear Noone é pop. Em junho, ela subirá ao palco do mítico Royal Albert Hall, em Londres, na condução da Royal Philharmonic Orchestra, para um espetáculo de fazer sorrir os amantes das novidades e franzir a testa dos conservadores. O Worlds of Fantasy: Video Games in Concert é um passeio por trechos de trilhas sonoras de games de sucesso, como a série de ficção científica Halo, os títulos de estratégia Civilization, o RPG Baldur’s Gate e o jogo de tiro Fortnite. O casamento da diversão com o concerto — em performances com vistosos telões ao fundo — é uma tendência interessante demais para ser desdenhada. Recentemente, o London Soundtrack Festival, realizado no fim de março, ofereceu um infindável pot-pourri de composições atreladas a brincadeiras eletrônicas.
É onda que chegou ao Brasil com pompa e circunstância. A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a reputada Osesp, já fez concertos inteiros dedicados a essas peças. A Orquestra Petrobras Sinfônica e grupos como a camerata de cordas da Universidade Federal do Ceará também entraram na dança. É mercado que não para de crescer, atrelado à adoração — digamos assim — pelo entretenimento. Em 2024, o faturamento global do setor de videogames ultrapassou 187 bilhões de dólares, cinco vezes mais do que a renda dos filmes de Hollywood.
O fascinante é perceber, com a ideia, os ecos nas salas de espetáculos eruditos, ao apresentar o clássico a quem nunca imaginou poder abordá-lo. Em março, diante da plateia de 500 pessoas no belíssimo Teatro Municipal de Santo André — e pelo menos metade ficou do lado de fora —, o pianista e professor Antonio Vaz Lemes encerrou um trecho da trilha do adorado The Legend of Zelda, composta por Koji Kondo, de pegada mozartiana (veja abaixo), e emendou uma boa pergunta, ao lado do maestro Abel Rocha: “Quem aqui veio pela primeira vez para ouvir uma orquestra sinfônica?”. Quase todos, salvo raríssimas exceções, ergueram os braços. “O fã que ama games vivencia as apresentações de outro modo, bate palma, se emociona de um jeito que surpreende até orquestras calejadas”, diz Lemes.

Ele é o criador do badalado perfil @pianoquetoca nas redes sociais, em que mistura, num inteligente liquidificador, ícones da chamada cultura geek — leia-se games, séries e animes — com harmonias ao piano. Lemes tem uma boa metáfora para atrair as plateias: a orquestra era o console de videogame de outras épocas. “Era a atividade artística em que as pessoas punham as mais revolucionárias ideias, como hoje fazem as séries, os filmes, os animes”, diz ele.
Não por acaso, de modo a costurar as pontas, Lemes sempre abre ou fecha as performances com um clássico histórico. E, na comparação de uma coisa com a outra, a trilha com uma composição das antigas, nota-se equivalente qualidade. É lugar-comum supor que as músicas de jogos são simples e pobres, feitas em sintetizadores. Nem sempre. Muitas vezes, elas têm melodias interessantes, que remetem a trabalhos seminais do cinema, como os de Nino Rota, Ennio Morricone e John Williams, nos quais imagens e partitura andam de mãos dadas.
Apesar da capacidade de atrair público cada vez mais numeroso e de seu poder evangelizador, as exibições não são unanimidade. Algumas instituições e muitos curadores torcem o nariz. O público mais tradicionalista, é verdade, dificilmente acompanha um concerto de trilhas sonoras. Há ainda outro ponto de debate: como fazer com que os jovens usem a sinfonia dos games como porta de entrada ao universo erudito. A resposta pede tempo. Apesar de todos os questionamentos, é inegável a relevância educativa de qualquer iniciativa capaz de levar milhares de novos ouvintes a uma sala de concerto pela primeira vez. É o tipo de experiência capaz de mudar vidas com o que há de melhor: diversão e emoção.
Diálogos
Trilhas de jogos populares bebem da música erudita de grandes compositores

The Legend of Zelda (1986)
Composição: Lost Woods
Autor: Koji Kondo
Dialoga com: Sonata para Piano Nº 11, conhecida como Sonata Alla Turca, de Wolfgang Amadeus Mozart
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Castlevania (1987)
Composição: Bloody Tears
Autor: Kenichi Matsubara
Dialoga com: Primeiro Movimento do Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra de Camille Saint-Säens
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Gris (2018)
Composição: Gris, Part 1
Autor: Berlinist
Dialoga com: composições do americano Philip Glass e de outros nomes da música minimalista
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Genshin Impact (2020)
Composição: Genshin Impact Main Theme
Autor: Yu-Peng Chen
Dialoga com: Daphnis et Chloé, balé de um único ato de Maurice Ravel baseado em romance pastoral do séc. II
Publicado em VEJA de 17 de abril de 2025, edição nº 2940