
E se um dia, em hipótese improvável, não precisássemos mais aprender idiomas, porque a inteligência artificial (IA) seria capaz de tudo traduzir? Teríamos ganhos inegáveis em termos de praticidade e, ao mesmo tempo, um efeito colateral preocupante. Estudos científicos mostram que perderíamos parte da capacidade de pensar. Um reputado levantamento da pesquisadora canadense Ellen Bialystok revela que o bilinguismo fortalece a atenção e a musculação cognitiva e adia o aparecimento de sintomas de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer. Um outro estudo de reputação internacional, feito por uma equipe da British Academy, aponta para memória mais aguçada entre as pessoas poliglotas.
Independentemente desses prognósticos, as ferramentas de interpretação simultânea avançam com velocidade. A Apple acaba de anunciar um dispositivo. O Google Meet já lida com inglês, espanhol e, logo mais, entenderá português, italiano e alemão. Em testes feitos pelo The Wall Street Journal com o idioma de Cervantes, o recurso mostrou qualidade — sobretudo na fluência e na naturalidade da voz sintetizada. O sistema verte o conteúdo da fala em tempo real, replica a voz e até as pausas naturais do orador original. Falha, contudo, no conteúdo, o cimento fundamental de compreensão numa conversa. Os tropeços da máquina são inúmeros: a tradução começa truncada, com trechos fora de contexto ou imprecisões (“match”, em inglês, virou “luta” em vez de “partida” esportiva). Há lentidão, com equívocos de ênfase, além de frases artificiais como “O calor… o clima… sempre muito quente”.
Há outros percalços, evidenciados com avaliações em ferramentas similares. Se alguém diz algo como “que ideia original”, em tom sarcástico, o robô tradutor tende a levar o comentário ao pé da letra, como se fosse genuíno elogio. Há dificuldade com a chamada linguagem figurada. Por muitas vezes estar enraizada nas origens culturais de um idioma, enriquecida pelo cotidiano, ela é armadilha frequente — e as máquinas ainda não chegaram lá. Um exemplo: a expressão em português “empurrar com a barriga” não é “push with the belly” em inglês. Um humano bem preparado consegue traduzir de modo adequado.

A tensão entre a suposta eficiência artificial e a competência humana desponta em um relatório da Organização Mundial da Saúde. A entidade avaliou o uso de IA em reuniões multilíngues e concluiu: embora os algoritmos tenham evoluído, ainda são incapazes de substituir o trabalho de um intérprete profissional. Há ganhos de escala e redução de custos, mas a precisão sofre. Em contextos de alto risco — como negociações políticas, acordos comerciais, anúncios médicos ou debates jurídicos —, qualquer mal-entendido pode ter consequências desastrosas. “Não basta repetir palavras. Um bom intérprete interage com o mundo, lê contexto, capta nuances. Para fazer isso, é preciso ser uma criatura autoconsciente”, diz Marsel de Souza, presidente da Associação Profissional de Intérpretes de Conferência.
O caminho natural é a tecnologia rapidamente eliminar boa parte das falhas. Mas ainda está longe o dia em que conseguirá mimetizar nossa escuta. Vale lembrar, unindo todas as pontas, o poeta José Paulo Paes (1926-1998): “Qual a graça de falar um idioma sem sotaque?”. Dito de outro modo: se ninguém mais precisar aprender línguas, que beleza terá o mundo? Como não há como frear o curso de um futuro cada vez mais presente, resta torcer para que a mesma inteligência humana capaz de criar esses robôs siga cultivando a inigualável e necessária experiência cultural possibilitada pelo aprendizado de um idioma.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2025, edição nº 2951