Os avanços tecnológicos prometidos pelos novos fones da Apple
Eles devem limitar sons do ambiente e proteger os ouvidos de forma inteligente, mas não substituirão certos cuidados com a audição
Se há um dispositivo eletrônico que surfa na onda do minimalismo, este é o fone de ouvido. Cada vez mais discretos — apesar da convivência com os modelos grandiloquentes e chamativos —, eles se popularizaram com os hábitos digitais e se tornaram uma febre assim que chegaram as primeiras versões sem fio ao mercado, em 2016. Hoje há um leque de opções e marcas à venda, com uma porção de funcionalidades e preços diferentes, sem falar nos produtos piratas. O estrondoso fenômeno, contudo, traz uma preocupação: em um mundo já repleto de poluição sonora, horas e horas ouvindo músicas e podcasts em alto volume podem contribuir para uma pandemia de perda auditiva. O alerta não parte só dos pais, cônjuges e colegas de trabalho: vem da Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo a qual cerca de 1,5 bilhão de pessoas sofrem com o problema no planeta. O envelhecimento tem sua parcela de culpa no cartório, mas os especialistas batem na tecla de que os fones estão deixando os ouvidos sob pressão. É a fim de atender a essa demanda de cuidados que a gigante Apple, uma das responsáveis pelo estouro desses produtos, aprimorou sua última geração de aparelhos. O principal ativo: zelar pela audição do usuário.
A atualização foi implementada no modelo AirPods Pro 2, o mais avançado entre os fones intra-auriculares da empresa, comercializados no Brasil por exatos 2 599 reais. O equipamento em si não é novo. A versão foi lançada há dois anos, mas, desde então, tem recebido uma sequência de lapidações. Na mais recente, do fim de setembro, os recursos de proteção auditiva foram implementados. Além de reduzir o ruído ambiente para resguardar células sensíveis no ouvido interno — em um show de rock ou na barafunda de uma feira ou de um shopping, por exemplo —, o gadget permite realizar um teste validado clinicamente para checar a capacidade de ouvir e, ao modular as ondas sonoras de interesse, promete servir como uma espécie de aparelho auditivo para pessoas com perdas leves ou moderadas.
Profissionais de saúde ficaram divididos com o anúncio da Apple. Há quem aponte o risco de usuários com déficit auditivo deixarem de procurar um médico e banalizar o teste em substituição aos exames de audiometria, feitos em clínicas especializadas. Mas há os otimistas. “Recursos como esse vão ajudar pessoas que não buscariam ajuda a perceber que têm algum grau de perda auditiva”, diz a fonoaudióloga Ingrid Gielow, da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia. Para ela, no entanto, o diagnóstico não deve se restringir à avaliação conduzida pelos fones e pelo celular. Só a análise com um especialista conseguirá distinguir a causa do problema e, consequentemente, propor a melhor solução.
Outra ponderação tem a ver com o fato de que dispositivos como os da Apple não são capazes de substituir plenamente os aparelhos auditivos prescritos. A tecnologia até permite adaptações úteis a quem tem deficiências mais brandas, assemelhando-se a uma categoria de aparelhos de audição chamados de over the counter, como o CRE-E10, da Sony, e o Tala, da marca Lucid. Eles costumam quebrar o galho por serem mais baratos que os dispositivos de ponta prescritos — cujo preço pode variar de 3 000 reais a 40 000 reais — e por poderem ser configurados com qualquer smartphone. Mas não se equiparam aos modelos prescritos para perdas mais significativas e surdez. “Esses são personalizados de acordo com as necessidades do paciente”, diz Gielow. Não à toa, exigem visitas ao especialista para definir tanto o formato quanto as frequências que serão amplificadas.
As atualizações dos AirPods Pro 2 ainda aguardam autorização da Anvisa para chegar ao Brasil, mas quem testou lá fora já percebeu limitações. Além de as funções só estarem disponíveis quando conectados a equipamentos Apple, como iPhone e iPad, eles ainda não são tão apurados quanto os dispositivos over the counter, e sua autonomia é de apenas algumas horas até uma recarga. Mas isso está longe de significar que as novidades não sejam bem-vindas. Conhecida pelo pioneirismo, a Apple tem fama de aprimorar constantemente suas criações. É provável, portanto, que as próximas gerações, turbinadas pela inteligência artificial, sejam mais eficientes, sem falar na corrida dos concorrentes para desenvolver produtos parecidos. “Isso deve trazer maior visibilidade aos cuidados auditivos”, afirma Gielow. Ainda assim, não basta um fone possuir funcionalidades como cancelamento de ruídos do ambiente. O usuário tem um papel a cumprir, seja baixando o volume e dando descanso aos ouvidos, seja procurando um profissional se o mundo começar a ficar silencioso demais.
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918