O pequeno notável: a incrível aventura do Game Boy
Lançado em 1989, ele tornou a diversão eletrônica portátil — a janela de surpresas que antecipou o fenômeno dos smartphones e nos trouxe ao mundo de hoje
Foi um alvoroço. Recentemente, o lançamento na App Store de um emulador do Game Boy, o mítico aparelho portátil lançado pela Nintendo em 1989, atraiu os amantes da nostalgia. Não demorou para que despontasse no topo da lista dos aplicativos mais baixados para iPhone e iPad. Em uma semana, contudo, o treco foi tirado do ar. A alegação: rompimento de regras de direitos autorais. Nos reputados fóruns de fãs e especialistas, contudo, a verdade era outra: houve incômodo da turma da maçã de Cupertino com o sucesso estrondoso da marca japonesa, e ninguém estava disposto a dormir com o inimigo.
O episódio ilumina a divertida aventura de um ícone. O Muro de Berlim ainda estava em pé. Os smartphones eram quimera de ficção científica. A criançada se debruçava diante de aparelhos de televisão, de joystick em mãos, para brincar com videogames de qualidade deplorável. E, então, deu-se aquela revolução em miniatura, com o Game Boy. O propósito: tornar os jogos eletrônicos portáteis. A tela era pequena, e os gráficos, simples e em preto e branco. Mas cabia no bolso, era robusto, permitia que o jogador pusesse fitas de diferentes games e mantinha a diversão por tempo indeterminado, bastando apenas trocar um par de pilhas comuns. Foi uma febre de cabeças magnetizadas pelas telinhas (lembra algo, não?). Vendeu mais de 430 milhões de unidades, na soma com sucessores mais potentes, coloridos e em 3D, e ajudou a criar e fortalecer algumas das maiores franquias do mundo. Agora, aos 35 anos, aposentado, brota na estante de colecionadores. Mas deixou vasta herança, a fagulha original que ainda hoje inspira o mercado de entretenimento.
O design minimalista, com apenas quatro botões e um joystick direcional e intuitivo, caiu no gosto. Mas a popularidade brotou mesmo com os títulos disponíveis. O primeiro que vem à mente é, sem dúvida, Tetris, o quebra-cabeça desenvolvido pelo russo Alexey Pajitnov. Do alto da tela caíam blocos de formatos variados e era preciso organizá-los em linhas perfeitas para que eles ficassem encaixados. A velocidade ia crescendo de forma contínua e era necessário ter habilidade para escapar do game over. Embora estivesse disponível em outras plataformas, no Game Boy ele encontrou o ambiente ideal. As partidas rápidas, que podiam ser realizadas em qualquer lugar, favoreceram o título, que vendeu 35 milhões de unidades apenas para o console diminuto.
O Tetris, no entanto, não foi o único. The Legend of Zelda: Link’s Awakening ajudou a consolidar o apelo do aventureiro Link, que nos anos seguintes ganharia alguns dos principais games lançados para futuros consoles da Nintendo. Mario, o simpático encanador, brilhava no popular Super Mario Land. Todos eles são lembrados com carinho e nostalgia pelos gamers. E, acima de todos, explodiu o Pokémon, a série de jogos baseados em lutas entre bichinhos de poderes variados. Ambientado em um mundo fantasioso, o RPG tornou-se um fenômeno. Além da boa história e das batalhas que exigiam planejamento dos jogadores, ele permitiu que amigos competissem lado a lado, cada um com seu aparelho, conectados por um cabo. O carisma dos seres fantásticos e a jogabilidade viciante fizeram de Pokémon a franquia mais lucrativa da história dos games, adaptada para a TV, o cinema, o mundo dos jogos de tabuleiro e um imenso etc.
Se hoje o hábito de jogar entrou na rotina da humanidade, em todas as faixas etárias, dos grandes épicos feitos para consoles de última geração aos pequenos jogos de smartphones, cujas partidas cabem em qualquer circunstância, convém agradecer — ou atribuir a culpa — ao Game Boy. “Ele representou a gênese de uma ideia, a portabilidade na palma da mão”, diz Vicente Martin Mastrocola, professor da graduação de jogos digitais da PUC-SP. À medida que ele evoluiu e ganhou cores, no modelo Colors, animações em 3D e telas sensíveis ao toque, com o 3DS, outras empresas do segmento tiveram de correr atrás.
Até o primeiro iPhone, de 2007, inovador por seu próprio mérito, tinha jogos que usavam as vantagens das telas touch, algo já comum aos donos de Game Boy. Atualmente, o Nintendo Switch, console mais recente da companhia japonesa, permite que o jogador escolha se quer usar o sistema acoplado à TV de casa ou de modo portátil, graças a uma tela instalada no equipamento. Tudo somado, o mundo seria outro sem o Game Boy, a chave para um portal de surpresas infinitas. A indústria de entretenimento eletrônico não chegaria aos atuais 273 bilhões de dólares de faturamento em 2024. E o nosso tempo, este que se debruça nas telas, vidrado, talvez fosse outro. Nem pior, nem melhor — mas diferente.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894