Mexeu no bolso
Para não afugentar seus anunciantes com vídeos inadequados, o YouTube aumenta o rigor de seus critérios de remuneração mas incomoda os produtores de vídeo
O movimentadíssimo universo do YouTube — com seu contingente de mais de 1 bilhão de usuários, espalhados por 91 países, que assistem todos os dias a 1 bilhão de horas de vídeos — anda agitadíssimo. Entre dezembro e fevereiro, vários youtubers — nome dado àqueles que ganham fama na plataforma — soltaram o verbo no próprio site contra novas políticas da empresa, como aquelas para lidar com publicações acusadas de ferir direitos autorais. O paulista Felipe Castanhari, dono de um exército de 12 milhões de seguidores, queixou-se de ter quase todas as suas postagens “desmonetizadas” por esse motivo — incluindo um vídeo de quase cinquenta minutos no qual apresentava quinze segundos de um documentário da BBC.
O que significa “ter as postagens desmonetizadas”? Simples: os anúncios vinculados a elas são retirados, ou o faturamento é repassado a quem reivindica os direitos autorais. Há duas semanas, outro tipo de protesto circulou na internet: nomes como Nando Moura, cujo canal conta com 3 milhões de inscritos, declararam que seus vídeos estariam sendo desmonetizados porque, na avaliação do YouTube, tratavam de “assuntos polêmicos” (no caso dele, desde a análise dos áudios do ex-ministro Gustavo Bebianno até comentários sobre o filme Marighella, de Wagner Moura). Além da onda de queixas dos youtubers, descobriu-se recentemente que uma imensa rede de pedófilos se apoiava no algoritmo de recomendações do YouTube para buscar, comentar e compartilhar imagens de crianças.
A celeuma levanta algumas questões. A primeira delas é básica: o que pode e o que não pode ser postado no YouTube? Outra: como a plataforma de vídeos penaliza quem fere suas regras? (Veja o quadro abaixo.) E mais uma: por que e de que maneira a plataforma é usada para a prática de crimes, como no caso da ação dos grupos de pedófilos? Na base das respostas a essas perguntas estão o alfa e o ômega de tudo: mais de 42 bilhões de dólares por ano. A cifra, monumental, representa quanto o Google, dono do YouTube, ganhou com publicidade apenas ao longo de 2018. E é para preservar essa dinheirama que a plataforma está vigiando o conteúdo dos vídeos, definindo regras para penalizar infratores e estudando formas mais eficazes de banir criminosos.
O negócio depende do faturamento com propaganda. Ocorre que boa parcela das marcas que investem no site vem manifestando receio de ter sua imagem associada a vídeos nos quais os youtubers xingam todo mundo, tratam de temas políticos espinhosos ou, o que é ainda pior, atraem atividades criminosas. A ação de pedófilos na plataforma, por exemplo, começou a ser escancarada em fevereiro pelo youtuber americano Matt Watson: “Nas últimas 48 horas, descobri um buraco de minhoca no qual um grupo de pedófilos age no YouTube. (…) E o algoritmo facilita”, alertou ele. “Facilita” como? Recomendando, a esses usuários delinquentes, gravações em que aparecem menores de idade.
De início, a revelação não teve maior repercussão porque, para os padrões do YouTube, Watson é pequeno demais, com seus 31.000 fãs. Mas o assunto tomou corpo quando, ao longo das duas últimas semanas, celebridades da internet como o sueco Felix Arvid Ulf Kjellberg, conhecido como PewDiePie (dono do maior canal de YouTube do planeta, com 87 milhões de inscritos), e o carioca Felipe Neto (com 30 milhões) compraram a briga. Entre 20 e 21 de fevereiro, companhias gigantes como a Nestlé, a Coca-Cola, a Disney e a Epic Games (proprietária do popularíssimo jogo eletrônico Fortnite) anunciaram que deixariam de investir no site até que o problema fosse resolvido.
Como doeu no bolso, o YouTube foi ágil em apresentar uma resposta. No dia 21, divulgou ter apagado 400 canais e dezenas de milhões de comentários de usuários que sugeriam teor pedófilo. A estratégia para atrair os anunciantes de volta já foi adotada antes pelo YouTube — e deu certo. Em 2017, uma investigação do jornal inglês The Times revelou que mensagens publicitárias eram promovidas em vídeos extremistas, de temas políticos e religiosos, inclusive os de cunho terrorista, em especial os usados como propaganda pelo Estado Islâmico. A notícia afastou anunciantes como Toyota e McDonald’s, mas eles retornaram quando o site deletou esses vídeos e aprimorou seu algoritmo para impedir a ação de terroristas. No ano passado, o dinheiro de publicidade de empresas como HP e Adidas deixou de entrar no YouTube porque conteúdos adultos, com imagens de violência e vocabulário chulo, estavam sendo sugeridos a crianças. Quando o problema foi contornado, os anunciantes, de novo, voltaram.
Só que, na outra faceta das polêmicas, as decisões que guiaram as “desmonetizações”, com base em critérios muito genéricos, acabaram apresentando efeitos colaterais — e atingiram youtubers populares no Brasil, como Felipe Castanhari e Nando Moura, que nada têm a ver com o salseiro. “Com critérios tão genéricos, já perdi um vídeo sob a alegação de que continha bullying. Mas me pergunto: quem define o que é bullying?”, disse a VEJA o deputado estadual Artur do Val (DEM-SP), que ganhou fama (e eleitores) com o canal Mamãe, Falei, que tem 2,5 milhões de inscritos. No vídeo em questão, o parlamentar criticava, de forma jocosa, discussões sexuais em uma aula na Universidade de São Paulo.
O YouTube afirma que sua política é cancelar a monetização ou retirar os vídeos considerados inadequados para a maioria dos anunciantes — como aqueles que incitam o ódio e os que ferem direitos autorais. Na prática, porém, as normas por vezes não são claras. Tanto que os produtores de conteúdo têm a alternativa de questionar as punições, pedindo a avaliação de um funcionário do Google — e não mais dos algoritmos. A experiência, contudo, mostra que esses empregados tendem a concordar com o que foi apontado por meios matemáticos e, por isso mesmo, desprezam os contra-argumentos dos youtubers.
Na realidade, o que importa ao YouTube é preservar seus anunciantes e garantir que a imagem deles não seja relacionada a nenhuma mensagem com a qual possam não concordar. Ainda que, com isso, o site tenha de limitar a ação dos youtubers. A meta do YouTube, embora não explícita, é fazer com que a plataforma deixe de ser o ambiente caótico pelo qual se tornou conhecida e passe a ser cada vez mais um polo de entretenimento — algo como a Netflix — e, de preferência, apropriado a toda a família. “É impossível continuar meu trabalho no YouTube”, resumiu Felipe Castanhari na publicação em que reclamou das regras do site. Depois dessa mensagem, Castanhari lançou apenas mais um vídeo, numa indicação de que, no mínimo, reduzirá muito a sua presença na plataforma.
Publicado em VEJA de 6 de março de 2019, edição nº 2624
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