A ofensiva dos jornais americanos contra empresa que criou ChatGPT
É briga imensa, cuja única saída é o bom senso
Faça uma experiência e pergunte ao ChatGPT — o robô de inteligência artificial (IA) criado pela empresa americana OpenAI, hoje financiada pela Microsoft — o que ele acha do anúncio de que oito jornais dos Estados Unidos, entre eles o Chicago Tribune, abriram um processo contra a empresa por violação de direitos autorais, ao beber de milhões de notícias publicadas anteriormente. A resposta virá banhada de sinceridade e cautela.
Assim: “Os jornais têm todo o direito de proteger seus ativos de propriedade intelectual, incluindo suas matérias jornalísticas, que são protegidas por direitos autorais. Se eles alegam que a OpenAI está utilizando seus conteúdos sem a devida autorização, é uma questão séria que merece ser investigada legalmente”. É problema que ainda vive a infância, crescerá com o tempo e desde já abre uma imensa avenida de discussões éticas.
O estopim do atual quiproquó legal foi uma ação movida pelo The New York Times, em dezembro do ano passado. As alegações, para além da subtração de conteúdo não autorizado: um pontapé na credibilidade, a criação de histórias irreais, ao juntar alhos com bugalhos, e a evidente concorrência desleal. A briga mal começou, e sabe-se lá como pode terminar, mas é certo que já não se pode tirar o bode da sala.
Acordos começam a ser desenhados, mas é improvável que a OpenAI saia vitoriosa. “As empresas jornalísticas precisam ser indenizadas quando o resultado da tecnologia gera um produto conflituoso, de objetivos semelhantes”, diz Allan Rocha, professor da UFRJ e diretor científico do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais. “Mas não podemos criar barreiras tão duras que impeçam o desenvolvimento tecnológico.”
De fato, mecanismos ao estilo do ChatGPT precisam se alimentar do maior volume disponível de dados para fazer o que fazem, ao emular respostas humanas. A OpenAI argumenta ser impossível “prover sistemas que satisfaçam às necessidades atuais dos cidadãos” utilizando quantidade limitada de informações. Daí o natural apoio no jornalismo. Contudo, é inaceitável que possam ferir o bom senso, em desrespeito à livre iniciativa.
O caminho mais nítido, certamente o mais rápido, mas economicamente inviável, seria simplesmente pagar o preço justo pelo uso do noticiário. Foi esse, aliás, o entendimento da União Europeia. Em recente decisão, determinou-se que todo conteúdo com dono deva ser remunerado. Na contramão, porém, países como Singapura e Japão apostam na liberdade total, de modo a acelerar as tecnologias — deixando para depois o veredicto final. É um erro, também, empurrar a contenda para os parlamentos políticos. “A sociedade deve antes discutir o tema, compreender os limites, saber que inexiste um consenso, e aí partir para algum tipo de legislação”, diz Rocha.
E, como sempre, convém acompanhar o que fazem os personagens da batalha que fogem do radicalismo. Empresas de comunicação como a The Associated Press, a Axel Springer e, mais recentemente, o Financial Times (FT), fizeram acertos com a OpenAI . Mediante o pagamento de valores não revelados, mas considerados coerentes, a mineração do jornalismo está liberada, desde que o ChatGPT sugira a leitura dos originais, quando for o caso. O FT tratou ainda de iniciar o estudo de uma máquina própria conduzida por IA. “Toda empresa de jornalismo vai precisar de IA, seja para material primário, seja para processamento de dados”, diz Anderson Rocha, pesquisador e coordenador do Laboratório de Inteligência Artificial da Universidade Estadual de Campinas. “É difícil dizer a que ponto chegaremos, mas acredito numa convivência amigável.”
Não se trata de demonizar o uso de tecnologias como o ChatGPT — elas não são, de modo algum, um mal em si. Tudo depende de como nós, humanos, as usamos. Inexistem certezas absolutas, à exceção de uma: o jornalismo profissional, como o de VEJA, baseado em verificação cuidadosa e respeito à verdade, é inegociável.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892