Gênio indomável: as revelações da mais completa biografia de Elon Musk
Livro mostra a faceta impulsiva e arrogante de um personagem que já foi celebrado como herói e passou a ser tratado como vilão
Em uma mensagem lacônica e assertiva, em setembro de 2022, ele mandou que os engenheiros da rede de comunicações por satélite Starlink desligassem a cobertura em um raio de 100 quilômetros perto da costa da Crimeia, de modo a impedir um ataque ucraniano contra a frota russa. Com a maior cara de pau, sem nem piscar, recusou, no ano passado, o pedido feito pelo governo brasileiro de exclusão das postagens de cunho conspiratório postados no X, o antigo Twitter, que promoviam os eventos golpistas de 8 de janeiro em Brasília. Por diversão — ou marketing, é claro — lançou para o espaço, em 2018, um surrado Tesla Roadster vermelho-cereja em uma órbita que iria, depois de quatro anos, aproximá-lo de Marte. Quem hoje, no mundo, mexeria com uma guerra, defenderia as falsas notícias sem escrúpulos e ainda faria sonhar com outros mundos? Elon Musk, o empresário sul-africano radicado nos Estados Unidos, alvo de uma caudalosa biografia de mais de 600 páginas escrita por Walter Isaacson, o biógrafo dos inovadores, de Benjamin Franklin a Albert Einstein, de Leonardo da Vinci a Steve Jobs (leia no quadro).
Elon Musk, o livro, lançado no Brasil pela Editora Intrínseca, em movimento simultâneo com outros países, é o mais completo retrato de um personagem com a cara de nosso tempo — incensado como herói, no início de sua trajetória inovadora, e depois criticado como vilão, dadas as posturas arrogantes, de olhar preconceituoso, inclusive com uma filha transgênero, Jenna, de 19 anos — “ela passou de socialista a comunista e também a achar que todo mundo que é rico é ruim”, disse — e o apoio a líderes políticos autocráticos, como Donald Trump. O fato de ter batizado o filho mais novo de Techno Mechanicus, de apelido Tau, como se fosse um relógio ou um carro, uma engrenagem qualquer, uma coisa e não uma pessoa, talvez seja apenas a nota bizarra de uma figura esquisitona — um gênio indomável. “Musk desenvolveu um fervor que disfarça o jeito pateta e um jeito pateta que disfarça o fervor”, escreve Isaacson. “Pouco à vontade no próprio corpo, como um homem grande e forte que nunca foi atleta, ele anda com os passos largos de um urso obstinado e dança com movimentos que parecem ensinados por um robô”.
Os movimentos de Musk, que não são apenas de corpo, ganharam luz em decorrência da mudança recente de postura política. Fã de Barack Obama, doador do Partido Democrata, ele virou a casaca — Joe Biden, não por acaso, é alvo predileto de suas postagens, os X’s, a nova alcunha dos tuítes. Bolsonaro — “um populista de direita”, na definição de Isaacson — aparece secundariamente no livro, citado uma única vez, na visita ao Brasil em 2022 no anúncio da instalação da Starlink em regiões da Amazônia. E qual razão para a troca de tom? A partir de conversas com Musk (foram dois anos de encontros, sem censura), o jornalista parece ter encontrado duas motivações: a interrupção das atividades de uma fábrica da Tesla em Fremont, durante a pandemia de Covid-19 — “o estrago provocado pelo pânico do coronavírus excede, e muito, o estrago causado pelo próprio vírus”, escreveu em um e-mail para os funcionários — e o distanciamento da filha Jenna. Musk atribui os embaraços, na rua e em casa, ao que considera a ditadura do politicamente correto — ou, como diz, ao exagero da “mentalidade woke”, que “quer tornar o humor ilegal”. Woke, em inglês, é o passado do verbo to wake up, acordar. Inicialmente usado pela comunidade afro-americana, ganhou agora significado mais amplo, o de despertar para as desigualdades da sociedade.
Musk não parece muito incomodado com essas questões, embora insista dizer que trabalha para resolver os problemas globais por meio de um leque de empresas que o fizeram o ser humano mais rico do mundo, com estimados 270 bilhões de dólares. Além da Tesla (que acelerou a transição global para os veículos elétricos), da Starlink (que levou a internet para lugares remotos), e do ex-Twitter (o “parquinho” de diversões), ele é dono também da Neuralink (uma de suas obsessões é controlar o cérebro humano) e da SpaceX (que tornou mais fácil levar coisas e gente para o espaço). As aeronaves em órbita são a joia da coroa alimentada pelo culto juvenil e um tanto exagerado ao livro Guia do Mochileiro das Galáxias, do futurista britânico Douglas Adams, de 1979. O Guia é adorado pelos nerds.
Para fazer tudo o que faz, Musk deixou atrás de si um rastro de insatisfação, inimizade e estupor. São famosas as aproximações e posteriores brigas com Jeff Bezos, da Amazon e Blue Origin, Bill Gates, da Microsoft, e Sam Altman, da OpenAI, companhia que foi incorporada à carteira de empresas de Musk. Aproxima-se por interesse e briga por achar estar perdendo dinheiro com contratos tortos. O biógrafo explica essa postura a partir de uma análise psicológica rasa e barata. “Em sua infância na África do Sul, Elon Musk conheceu a dor e aprendeu a resistir a ela”, escreve Isaacson logo nas primeiras linhas do calhamaço (lembre-se que Musk, um homem branco, passou a meninice em meio ao apartheid segregacionista). No início dos anos 1980, ainda criança, ele foi enviado a um acampamento de verão que mais parecia um curso de sobrevivência na selva. Assediado pelos garotos maiores, sofreu com ameaças e espancamentos — viria daí o suposto trauma que o faria adulto agressivo, forte e poderoso. É explicação singela demais para um personagem tão rico.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859