E-sports: o nó da polêmica aberta por Ana Moser
A ministra provocou a ira da comunidade gamer ao dizer que o nicho é entretenimento, não esporte. Mas a questão é outra: o errado é pôr dinheiro público
A ministra do Esporte, Ana Moser, nunca foi de fugir de briga em seu tempo como jogadora de vôlei — e as épicas e mercuriais batalhas diante das cubanas na década de 90 são prova de seu comportamento sempre sério e rigoroso. Agora em 2023, a briga é outra e talvez ainda mais difícil do que nas quadras. O primeiro passo é reajustar os valores do Bolsa Atleta, estagnado há dez anos, e sem o qual muito dificilmente o Brasil terá equipes competitivas em Olimpíadas. Ela está decidida, também, a conseguir verba para tornar a prática esportiva acessível para toda a população. O caminho é correto e precisa ser posto à mesa. Contudo, foi engolido por uma outra discussão, inesperada. Instada por jornalistas do portal UOL a comentar a ascensão dos jogos eletrônicos — os chamados e-sports —, Moser cortou: “A meu ver, é uma indústria do entretenimento, não é esporte”. E acrescentou, ao rebater o argumento de que os gamers passam por intenso treinamento para as competições que lotam ginásios pelo país: “a Ivete Sangalo também se prepara para dar show e nem por isso é uma atleta”.
A reação foi imediata. Casimiro Miguel, sensação do universo do streaming, tratou a fala como “grotesca, porque parecia não saber do que estava falando”. Alexandre Borba, o Gaules, um dos maiores influenciadores do ramo, foi quem tocou no ponto crucial: “Nós nunca precisamos desse pessoal”. Ele tem razão e, a rigor, parece andar de mãos dadas com a ministra: não é preciso pôr dinheiro público numa modalidade que vive muito bem com patrocínio e investimento da iniciativa privada. Não é o caso, definitivamente, da criação de um socorro artificial, o “bolsa gamer”.
O que realmente incomodou os membros dessa indústria bilionária (veja no quadro) foi, na verdade, a forma e não o conteúdo da análise de Moser. A comunidade costuma se unir no combate a estigmas, como o de que videogame é uma porta de entrada para o sedentarismo, a obesidade e impulsos violentos. Há uma série de evidências a favor deles, como a presença crescente de jogadores profissionais, que ganham fortunas e passam por rígido acompanhamento, incluindo dietas; ou estudos, como um da Universidade de Oxford, na Inglaterra, segundo o qual a prática sem exageros pode produzir bem-estar e aliviar transtornos como depressão e ansiedade. O nó, insista-se, é outro, e não se trata de um dilema shakespeariano: é esporte ou não é? A chancela estatal é que produziria efeitos colaterais.
Desde 2017 tramita no Senado a Lei Geral do Esporte, cuja versão original tratava atividades esportivas como “predominantemente físicas”. Os gamers, a rigor, teriam muito a perder caso abandonassem o modelo atual, no qual transitam entre cultura e tecnologia. Já há, inclusive, algum aporte público indireto, visto que o Banco do Brasil é um dos principais patrocinadores de campeonatos e atletas virtuais. É verba que sai do setor de entretenimento, e não do ínfimo orçamento de 190 milhões de reais anuais que o esporte tem por lei, até agora. Além disso, videogames e computadores recebem tributação inferior a bolas, raquetes, luvas e capacetes. “Buscamos regulamentação, mas se esse processo for conduzido por quem não tem conhecimento da área e só servir para ampliar a burocracia com políticos e federações, será ruim”, disse a VEJA Thomas Hamence, CEO da paiN Gaming, uma das principais equipes do Brasil. “Não se trata de discutir o financiamento, mas de respeitar o esforço físico, técnico e psicológico dos atletas”, afirma André Akkari, cofundador do time Furia.
Nem mesmo a possibilidade de se tornar esporte olímpico entusiasma a turma. O Comitê Olímpico Internacional (COI) já abriu as portas para os e-sports, mas priorizará jogos eletrônicos que simulem modalidades reais, como o ciclismo. Games de tiros, não. Além disso, ser adotado pelo COI obrigaria a construção de federações, o que atrapalharia os negócios. A vontade da comunidade dos e-sports vai na contramão do universo de uma outra atividade, o xadrez. Reconhecido desde 2005 como “esporte da mente”, segue lutando, sem sucesso, para virar olímpico. Fica bem onde está — e os games também, sem a forcinha desnecessária do bolso do contribuinte.
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825