E o ‘ronco dos motores’? O problema curioso que os elétricos enfrentam
Além de assegurar a performance, modelos precisam manter vivo o escarcéu sonoro que tanto seduz os fãs
São celebrados — por quem gosta, é claro — os vilões do filme Mad Max: Estrada da Fúria, de 2015, do australiano George Miller. Devotos do “Culto do V8”, mistura de religião e filosofia militar, bebem da atração por carros velozes e seus poderosos motores a combustão, de onde tiram a força vital. O totem dessa seita ficcional é o propulsor do Ford Mustang. Ele pode ser reconhecido de longe pelo ronco agressivo, espalhafatoso, em forma de fetiche. No mundo das coisas reais, sem o exagero da imaginação cinematográfica, há uma turma com essa pegada — os petrolheads, viciados em veículos sobre quatro rodas, sobretudo se forem muito, mas muito ruidosos. Como então adaptar o amor eterno pelo escarcéu das máquinas com o atual empenho para levar às ruas e estradas os carros elétricos, ecológicos, menos poluentes, mas naturalmente mais silenciosos?
Pode soar como indagação bizantina, mas não é. Trata-se de preocupação real do mercado, atento aos nós ambientais mas também ao gosto dos consumidores. Tome-se como o exemplo a própria Ford, que acaba de trazer ao Brasil o Mustang Mach-E, versão eletrificada do clássico esportivo e primeiro veículo totalmente elétrico da montadora no país. O visual mudou. Ele virou um SUV, maior e mais alto, de pegada familiar, mas rapidíssimo. É capaz de ir de 0 a 100 quilômetros por hora em apenas 3,7 segundos — ante 4,3 segundos do motor tradicional. Tudo isso, em calmaria sepulcral. Mas e aquele vruuuuuuuuum gostoso e infernal, afeito a não alijar os adoradores? Deu-se um jeito, com o apoio de tecnologia de ponta. Ao selecionar o modo de “condução esportiva”, o motorista pode optar por ativar uma simulação sonora de propulsão. “Contratamos um time de especialistas para criar um som cinematográfico”, diz Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford no Brasil. O resultado não é idêntico, mas quem sentiu e ouviu aprovou. Nos Estados Unidos, as vendas das versões a combustível fóssil e elétrica estão parelhas. Até setembro, foram negociadas 31 900 unidades do Mach 1, com motor tradicional, e 28 000 do Mach-E.
Convém não desdenhar do zelo pelo que emana da lataria. O alemão Dieter Landenberger, diretor dos arquivos históricos da Porsche, chegou a definir o querido alarido da grife como uma “mistura única entre a melodia emocionante do motor boxer, o crescendo das válvulas e o trombetear do sistema de escapamento”. Há até mesmo um livro, Porsche Sounds, dedicado à história de seus principais modelos a partir do aspecto emocional causado pelos sons. Não por acaso, a travessia para a eletricidade teria de ser feita com cuidado e inteligência. Na Europa, a montadora tentou registrar uma patente para a simulação sonora que desenvolveu, mas as autoridades de propriedade intelectual acharam que o estrondo não era tão memorável para ser reconhecido como único, e disseram “não”. A empresa está recorrendo da decisão, afirmando se tratar de uma criação artificial desenvolvida por músicos e compositores de trilhas sonoras.
A Porsche não está sozinha. A BMW contratou Hans Zimmer, autor de várias trilhas de Hollywood, para criar o som de seu BMW i4. Para os saudosistas, há empresas que vendem kits específicos com caixas de som acopladas ao veículo, projetadas para reproduzir o saudoso ruído. É movimento que faz um barulhão danado, porque a civilização avança, mas o já conhecido demora para ser abandonado. Contudo, há quem caminhe na contramão, certo de abrir novas estradas. A chinesa BYD, que trouxe o esportivo Seal ao Brasil, assumiu o silêncio quase total a bordo da cabine, com apenas uma ligeira sonoridade futurista do motor elétrico, e incluiu apenas um alerta sonoro para pedestres. Os tempos estão mudando — mas é sempre bom não abandonar a história e desdenhar da cultura.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864