China se consolida como maior fabricante de veículos elétricos do mundo
Rápido avanço do país sobre mercados internacionais preocupa as montadoras tradicionais
Um dos marcos do nosso tempo é a voracidade da indústria chinesa, alimentada pela imensa capacidade produtiva, preços baixos e — agora, sim, finalmente, depois de tanto descaso — a qualidade do que é vendido. O avanço global começou com eletrônicos, chegou ao campo de roupas e calçados e alcançou agora um setor, o da indústria automotiva, que parecia para sempre dominado por americanos, japoneses, sul-coreanos e europeus. O salto foi promovido, sublinhe-se, plugado na tomada, por meio dos carros elétricos. Resumo da ópera: você ainda terá um carro made in China e muito provavelmente ele será eletrificado, como mandam os bons modos de preocupações com o ambiente, e adeus aos combustíveis fósseis.
Dois resultados fundamentais foram divulgados no fim do ano passado. A BYD (Build Your Dreams), fundada em 2003 na cidade de Xian, superou, pela primeira vez, a Tesla de Elon Musk em número de veículos a bateria negociados. No último trimestre de 2023, foram 526 000 unidades, contra 484 000 da rival americana. Com isso, tornou-se a maior fabricante de veículos elétricos do mundo, com 3 milhões de unidades, incluindo os híbridos. A maior parte fica dentro da China, mas as exportações começaram a ampliar horizontes — e o Brasil e a Europa são mercados estratégicos. Com isso, o Japão deixou de ser o maior exportador de carros do mundo. São sinais claros de que os tempos, enfim, são outros.
O resto do mundo, compreensivelmente, teme o avanço chinês. Não à toa, governos buscam impor taxas maiores de importação para tentar conter a concorrência e proteger as indústrias locais. No Brasil, por exemplo, até o final de 2023 os veículos elétricos e híbridos importados não pagavam impostos. Foram oito anos de isenção, o que fez com que quase nenhuma montadora com produção local investisse em modelos eletrificados — as únicas exceções são a Caoa Chery e a Toyota, que têm modelos híbridos leves. No ano passado, com a chegada da BYD e da GWM, outra grife chinesa, o governo decidiu rever a taxação, retomada a partir deste mês e que seguirá de forma progressiva até chegar a 35% em julho de 2026. Nos Estados Unidos, onde a presença oriental ainda é pequena, o presidente Joe Biden já afirmou que pode aumentar as tarifas de importação. Os europeus anunciaram uma investigação em torno dos carros chineses.
A batalha está apenas começando, mas é certo antecipar o capítulo inicial de uma reviravolta repleta de nós diplomáticos e armadilhas econômicas. As montadoras tradicionais, de fato, vão perder espaço, pois simplesmente não têm capacidade de concorrer com os chineses, que viram a oportunidade com antecedência. “Esse desenvolvimento começou há dez, quinze anos”, diz o consultor Cassio Pagliarini, da Bright Consulting, especializada no setor automobilístico. “Os chineses estão no fim desse caminho, e não vemos muitos grupos ocidentais em posição de disputar esse espaço”. Gigantes, como a alemã Volkswagen, não estão bem posicionadas na corrida elétrica e tendem a perder mercado. Ao mesmo tempo, o acesso a veículos eletrificados bons, bonitos e baratos, repletos de tecnologias, é algo de interesse global. Há uma demanda crescente por métodos menos poluentes de transporte, e os carros a combustão são responsáveis por cerca de 15% de todas as emissões mundiais de CO2.
Apesar da bem-vinda preocupação ambiental, é preciso manter os pés no chão. A estrada rumo à eletrificação total da frota global é longa. Mesmo em mercados mais maduros, como o americano, a infraestrutura está longe do ideal. No severo inverno de cidades como Chicago, imagens de filas de espera e das estações de carregamento da Tesla congeladas circularam o mundo e chamaram a atenção para a necessidade de cuidados especiais com as baterias. No Brasil, o preço ainda elevado dos modelos eletrificados restringe sua participação no mercado, hoje em torno de 7%, embora tenha dado um salto (no início do ano era de 3,5%). As montadoras já presentes aqui querem mudar a situação. “Para a BYD, o Brasil é o país mais relevante para a companhia fora da China”, diz Alexandre Baldy, presidente do conselho de administração da empresa no país. Outras marcas já anunciaram planos de atuar em território brasileiro, como Omoda e Jaecoo. A China correu, correu e chegou lá, elétrica.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877