Aparelhos da TV Box são a evolução da pirataria, crime cercado de riscos
Ilegais, eles estão cada vez mais presente em casas brasileiras de todas as classes sociais
Na linguagem popular, fazer um gato — ou gambiarra — significa furtar energia elétrica com uma ligação clandestina. Surgiu daí o “gatonet”, termo usado para definir o acesso ilegal a canais de TV pagos. No início, a prática se resumia à instalação de antenas paralelas e decodificadores, uma forma encontrada por parte da população para ter acesso ao conteúdo das TVs por assinatura a um preço bem mais acessível. A pirataria evoluiu na mesma medida que o hábito de parar diante de uma ou mais telas em busca de entretenimento. Na era do streaming e dos serviços sob demanda, o gato surfou as ondas da internet e chegou a bairros nobres. A nova febre são as chamadas TVs Box , que oferecem um cardápio praticamente ilimitado.
A TV Box, aparelho que tem esse nome por ter formato de caixa, não é ilegal por si só. Uma vez conectado na internet, o dispositivo é capaz de transformar uma TV comum em smart TV, dando acesso a canais e plataformas de streaming. Entre as opções homologadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) — legalizadas, portanto —, há modelos da Apple, da Xiaomi e das operadoras, mas não são esses que vêm dando dor de cabeça para as autoridades. O queridinho dos piratas é o BTV, um receptor que dá acesso a uma lista de IPTV (sistema de transmissão de sinal de TV via internet) com mais de 300 canais brasileiros e estrangeiros, alguns em 4K e HD, além de milhares de séries, filmes (incluindo os recém-lançados) e plataformas de games.
Trata-se de um espetacular furto de sinais. A mensalidade? Gratuita. Basta comprar o aparelho produzido na China, vendido na faixa de 1 200 reais, ligá-lo ao cabo HDMI, conectar a internet via wi-fi ou cabo, e preparar a pipoca. Há ainda outras opções de TV Box, com mensalidades na casa dos 30 reais, uma ninharia perto dos pacotes básicos de operadoras como Claro/Net, Sky e Vivo. A alternativa parece interessante para muita gente, mas não custa lembrar que, ao comprar esse tipo de equipamento, um cidadão está faltando com a ética e alimentando a contrafação.
O cerco contra a pirataria tem aumentado. Desde o início de 2020 , o Plano de Ação de Combate à Pirataria, criado pela Anatel, apreendeu 2,7 milhões de produtos piratas, sendo 851 000 TVs Box. “Temos combatido, seja com campanhas de conscientização, seja com repressão, a falsa impressão de legalidade”, diz Eduardo Carneiro, coordenador de Combate à Pirataria da Ancine. “No passado, havia a visão romântica de que a pirataria é uma espécie de Robin Hood, que tira dos ricos para dar aos pobres, mas não passa de crime organizado.”
De acordo com o Código Penal, violações de direitos autorais estão sujeitas a multas e até quatro anos de reclusão, embora no Brasil sejam raríssimas as punições desse tipo. Vendedores e compradores também podem ser denunciados por contrabando, crime contra as relações de consumo e concorrência desleal. Os esforços da Anatel, em conjunto com a Receita Federal, Rede Globo, operadoras e redes sociais, concentram-se no momento em impedir a entrada e bloquear esses aparelhos.
É importante ressaltar que os riscos vão além da esfera criminal. Seja nas TVs Box, seja em sites ilegais, que respondem por 60% da pirataria no país, há registros de ataques hackers, com roubo de dados pessoais, e até explosões dos aparelhos. “Fizemos um trabalho de engenharia reversa que comprovou que, por meio dessas caixas, é possível acessar câmeras e microfones de todos os aparelhos conectados à rede”, diz Wilson Wellisch, superintendente de fiscalização da Anatel. “É um fato: hackers estão roubando dados por meio da TV Box.” O gatonet 2.0 pode funcionar num primeiro momento, mas uma hora ou outra ele subirá no telhado.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754