2019: O ano em que todos estavam na selfie
Agora mesmo, no brevíssimo tempo gasto para ler essas duas palavras, 1.000 pessoas terão feito o moderno autorretrato
Agora mesmo, no brevíssimo tempo gasto para ler essas duas palavras, 1.000 pessoas terão feito uma selfie. São 93 milhões dessas fotos todos os dias, numa avalanche deflagrada em 2010, quando a Apple instalou câmeras frontais nos smartphones e aplicativos de compartilhamento de imagens, como o Instagram, começaram a se popularizar. O fenômeno, portanto, ressalve-se, não é exatamente novo — trata-se de um filme, algo ainda em andamento, e não, vá lá, de uma fotografia. Selfie, aliás, foi escolhida a palavra do ano pelo dicionário inglês Oxford lá em 2013, na pré-história. Mas em 2019, como nunca antes, o gesto narcisista virou hábito incontornável, onipresente. Daqui a décadas, séculos, quando formos buscar resquícios de nossa civilização, para compreendê-la, os autorretratos modernos serão a marca indelével do que um dia fomos.
Faz-se selfie em qualquer circunstância, apenas pelo desejo de fazê-la, simples assim. Não por acaso, o ano foi marcado também por episódios assustadores de pessoas que se acidentaram ao tentar registrar a si mesmas diante de uma ponte em Hanói, no Vietnã: a Long Biên. Inaugurada em 1903, ela liga as duas margens do Rio Vermelho. Há, no entanto, um detalhe: os trens ainda correm pelos trilhos, muito próximo da passagem de pedestres — e, hoje, dos fanáticos pelos autorretratos, que não se incomodam de viver perigosamente. Em 2019, nenhuma selfie foi mais compartilhada do que a feita pelo guarda-florestal Mathieu Shamavu, do Parque Nacional Virunga, na República Democrática do Congo. Duas irmãs gorilas (Ndakazi e Ndeze, de 12 ou 13 anos) inventaram de aplicar uma photobomb na cena — photobomb é a arte de arruinar a selfie alheia, dando um jeitinho de aparecer de surpresa no enquadramento, puro desmancha-prazeres. O retrato virou piada, alimentou memes, é claro, mas rapidamente passou a ser tratado com seriedade — chamou atenção para o descaso público com o parque congolês e a pobreza atávica do país. E uma selfie, um tantinho egoísta, aparentemente banal, ingênua, funcionou como bandeira coletiva.
Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667