Variantes do vírus da raiva de saguis são encontradas em morcegos
Estudo feito em animais no Ceará alerta para a circulação do vírus no ciclo selvagem; doença pode causar a morte de seres humanos
Variantes do vírus da raiva detectadas em morcegos intimamente relacionadas com variantes presentes em saguis-de-tufo-branco (Callithrix jacchus) foram encontradas no Ceará, acendendo um alerta para a circulação do vírus, mortal para humanos. Os saguis são bastante comuns em áreas selvagens e urbanas no Brasil, muitas vezes sendo capturados e mantidos como animais de estimação.
Apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o estudo foi coordenado por pesquisadores da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp). Os resultados foram divulgados no Journal of Medical Virology.
Além da semelhança entre as variantes encontradas nos morcegos analisados, chamou a atenção dos pesquisadores a presença do vírus da raiva em espécies frugívoras e insetívoras dos mamíferos voadores. Os morcegos que se alimentam de sangue são mais conhecidos por serem hospedeiros e importantes transmissores do vírus da raiva.
“Até agosto deste ano, foram encontrados sete saguis positivos para raiva. No Ceará, a doença é endêmica e temos um histórico de agressões de humanos por saguis e mortes por raiva, uma delas ocorrida em maio”, conta Larissa Leão Ferrer de Sousa, servidora no Laboratório Central de Saúde Pública do Ceará (Lacen), em Fortaleza, e doutoranda na EPM-Unifesp.
Sousa se refere à morte de um agricultor de 36 anos, agredido por um sagui em fevereiro no município de Cariús. O homem só buscou atendimento em abril, quando começaram a surgir os sintomas, mas não resistiu. A infecção pelo vírus causa encefalite progressiva, uma inflamação do cérebro que leva à morte em quase 100% dos casos.
“O sagui caiu no quintal dele com dificuldade de locomoção. O homem tentou ajudá-lo e foi mordido. O animal já apresentava sinais de paralisia, um dos sintomas da raiva. Nem sempre o animal doente mostra agressividade e boca espumando, o que a população normalmente associa à raiva. Por vezes, nem mesmo há sintomas aparentes”, explica a médica veterinária.
Sousa adverte ainda que não se deve tocar em morcegos e outros mamíferos silvestres. Quando encontrar esses animais mortos, deve-se notificar o serviço de zoonoses do município para que sejam encaminhados para análise.
Além disso, a pessoa que teve contato direto com o animal deve procurar atendimento médico para que seja administrado soro e vacina antirrábicos, a depender do caso.
“O tempo de incubação do vírus da raiva é de 45 dias em média. Por isso, é de extrema importância que o indivíduo seja submetido à profilaxia pós-exposição imediatamente. Sem a realização desse tratamento [soro e vacina antirrábicos], quando aparecem os sintomas, o prognóstico normalmente é fatal”, explica Ricardo Durães-Carvalho, pesquisador da EPM-Unifesp apoiado pela Fapesp e coordenador do estudo.
Sequenciamento
Os pesquisadores analisaram 144 amostras de tecido retirado do cérebro de morcegos pertencentes a 15 espécies. Os animais chegaram ao Lacen do Ceará entre janeiro e julho de 2022, como parte do programa nacional de vigilância epidemiológica. No âmbito desse programa, os profissionais de saúde coletam mamíferos encontrados mortos ou com sintomas de infecção pelo vírus no Estado.
As amostras tiveram o RNA extraído para análise dos vírus encontrados. Em seguida, as sequências genéticas do vírus da raiva foram comparadas com outras depositadas em bancos de dados públicos. Ferramentas próprias foram usadas para traçar a história evolutiva dos vírus encontrados.
O primeiro conjunto de sequências era compatível com variantes do vírus da raiva encontradas em duas espécies de morcego do Sudeste em 2010, os insetívoros Tadarida brasiliensis e Nyctinomops laticaudatus.
No entanto, outro grupo de variantes, encontrado pela primeira vez em morcegos (duas espécies insetívoras e uma frugívora), tem relação evolutiva muito próxima com o vírus da raiva detectado em saguis-de-tufo-branco do Nordeste brasileiro.
“Nossos resultados permitem inferir a presença de distintas variantes do vírus da raiva, evolutivamente próximas e originalmente presentes em um determinado animal, em outros. Isso revela uma complexa dinâmica de espalhamento [spillover] e de múltipla transmissão viral entre hospedeiros”, explica Durães-Carvalho.
Com a intensificação da vacinação dos animais domésticos, os bichos silvestres se tornaram a principal fonte de raiva humana nas Américas. O primeiro caso de morte por raiva associada a um sagui foi reportado em 1991, também no Ceará. Depois disso, outras 14 mortes no Estado foram atribuídas à transmissão por esses primatas.
Morcegos e saguis, proeminentes atores na cadeia de transmissão da raiva no Brasil, possuem importantes funções ecológicas e sofrem com a perda de habitat resultante da expansão das cidades e da agropecuária.
Os morcegos, em especial, são importantes para o equilíbrio dos ecossistemas e fundamentais na dispersão de sementes, polinização e controle de pragas. “O melhor é respeitar esses animais e mantê-los na natureza”, encerra Sousa. O estudo também teve apoio da Fapesp por meio de outros cinco projetos