Vacina que é arma contra câncer esbarra em cobertura abaixo da meta
Vencer essa barreira é crucial para eliminar o HPV, que está por trás do câncer de colo de útero
Há cinquenta anos, o cientista alemão Harald zur Hausen sugeriu pela primeira vez que um patógeno altamente transmissível, o papilomavírus humano, estaria por trás do câncer de colo de útero, um dos mais prevalentes entre as mulheres. Ele levou uma década para provar sua hipótese. Graças a essa descoberta, reverenciada com o Nobel de medicina em 2008, o mundo tomou conhecimento de que o HPV abria caminho a tumores e que seria possível desenvolver uma vacina que, ao bloquear o vírus, preveniria o câncer. Essa arma se tornou uma realidade e, neste mês, completa dez anos de distribuição gratuita pelo governo brasileiro. Trata-se de uma estratégia segura e eficaz que, no entanto, patina nas taxas de cobertura por ser alvo de ignorância e fake news, o que põe em risco a imunização e a proteção do público a que se destina o produto, meninas e meninos de 9 a 14 anos.
A literatura médica aponta que até 12% dos cânceres têm relação com algum tipo de vírus. O HPV é um deles. Nem sempre a infecção terá grandes repercussões — muitas vezes, será debelada pelo próprio organismo. Ocorre que alguns subtipos virais, os mesmos contemplados na vacina, aumentam a propensão a tumores no útero, na boca, na garganta, na vagina, no pênis e no ânus — sem falar que outras variantes do micróbio causam verrugas genitais. O ponto é que a maioria das pessoas com vida sexual ativa trava contato com o HPV, e o preservativo não é uma barreira 100% eficiente contra a transmissão.
Daí a relevância de um imunizante largamente testado para essa finalidade. Suas doses permitem reduzir drasticamente o perigo de uma condição com impactos agressivos do ponto de vista tanto individual como da saúde pública — a projeção é de 17 000 novos casos de tumores de colo de útero por ano no Brasil. Ter à mão uma fórmula anticâncer, contudo, não foi suficiente para o êxito da campanha de vacinação. Episódios de jovens no Acre que apresentaram dor de cabeça, desmaios e convulsões após as doses levaram a um temor coletivo que ainda hoje depõe contra a vacina — um estudo da USP comprovou que as reações foram apenas efeitos psicológicos. Soma-se a isso o receio de alguns pais de que o imunizante instigue os jovens a iniciar a vida sexual mais cedo, outro argumento desmentido por pesquisas. Com a interrupção da vacinação nas escolas, a adesão só piorou. O balanço do Ministério da Saúde, com dados de 2014 a 2023, mostra que, entre as meninas, a cobertura vacinal da primeira dose é de 75%, índice que cai para 58% na segunda. Entre os meninos, as taxas são de 52% e 33%, respectivamente.
Os números abaixo da meta tornam distante por aqui a execução do plano da Organização Mundial da Saúde (OMS) de eliminar a doença que mata uma mulher a cada dois minutos no globo até 2030. Há muito trabalho pela frente. “As experiências de sucesso com a vacinação, como as taxas de 90% na Austrália, ocorrem em locais que imunizam as crianças nas escolas”, diz a oncologista Angélica Nogueira Rodrigues, do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA). Mesmo com índices abaixo do ideal, o imunizante quadrivalente disponível na rede pública e a versão nonavalente ofertada pela rede privada têm impactado nas infecções. Um estudo com a população brasileira atestou o poder do imunizante na vida real. Ao comparar jovens de 15 a 26 anos não vacinados com aqueles imunizados, notou-se uma diferença significativa na incidência do HPV: 15% no primeiro grupo, ante 3% no segundo. “Quando diminuímos a circulação do vírus, até quem não foi vacinado acaba protegido”, afirma Eliana Wendland, epidemiologista do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, e líder da investigação.
Além da aplicação da vacina, o cerco ao patógeno cancerígeno se amplia com uma nova tecnologia que passará a ser fornecida pelo sistema público. É o teste molecular para detecção do HPV, capaz de antecipar em dez anos o diagnóstico de lesões e uma alternativa ao método tradicional, o papanicolau, nem sempre acessível. Nos estudos científicos, outra proposta é mapear moléculas no sangue que ajudem a nortear o tratamento assim que o tumor é identificado. “Nossa ideia é encontrar biomarcadores ligados à resposta imune das pacientes”, diz o pesquisador Kenneth Gollob, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Sim, a caçada se intensificou. Resta às autoridades e famílias fazerem sua parte. Afinal, há uma vacina contra o câncer no SUS.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885