“Uma indignação se transformou em ação”
Prestes a fazer 99 anos, Jô Clemente, a fundadora da antiga Apae, recorda sua trajetória voltada a crianças com deficiência

Minha história se entrelaça com a do meu filho, Zequinha, que nasceu com síndrome de Down em uma época em que a diferença era, praticamente, sinônimo de invisibilidade. Como dona de casa, jamais imaginei que a maternidade me conduziria a um caminho de luta e transformação social como o que acabei traçando. A dificuldade em encontrar uma escola que acolhesse o Zequinha e outras crianças como ele despertou em mim uma indignação que se transformou em ação. Ao lado de quatro famílias que lutavam por oportunidades educacionais para seus filhos, idealizamos, em 1961, um espaço que pudesse suprir essa lacuna. Assim nasceu a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de São Paulo, inicialmente um centro voltado à formação de profissionais de saúde. Mas a urgência em oferecer educação especializada nos impulsionou a abrir nossas portas para as próprias crianças com deficiências.
Um sobrado na Zona Sul paulistana foi o embrião de um movimento que desafiou a norma de uma sociedade que, por costume, marginalizava a criança com deficiência. A resistência inicial, inclusive por parte de alguns pais que tinham receio de expor os filhos, não nos desanimou. Acreditávamos firmemente no potencial de cada pessoa — não importavam suas particularidades. A Apae cresceu com o apoio da comunidade, e duas iniciativas foram fundamentais para a nossa sustentação e visibilidade. A primeira foi a Feira da Bondade, idealizada com a colaboração de mulheres da alta sociedade paulistana, que generosamente vendiam produtos importados. Ela se tornou um evento aguardado e essencial para angariar os recursos que nos permitiram construir nossa sede em um terreno cedido pela prefeitura.
Outra ação marcante foi o Agulhas da Alta Moda Brasileira, que reunia desfiles, bailes e jantares e chegou a congregar figuras importantes do meio financeiro, demonstrando o engajamento de diversos setores com a causa. Mas eu digo que uma das nossas maiores conquistas mesmo foi trazer para o Brasil, em 1976, o teste do pezinho, exame simples, feito em recém-nascidos, com um impacto gigantesco na detecção precoce de doenças que podem levar à deficiência intelectual e até mesmo a óbito. Foi um divisor de águas na saúde pública do país.
Então, à medida que Zequinha crescia, vivendo de forma independente, com amigos e autonomia — algo raro para pessoas com síndrome de Down naqueles tempos —, minha preocupação se estendeu ao bem-estar dos que envelheciam com deficiência. Em 1998, apoiei a criação de um centro especializado em estimulá-los nessa fase da vida, reconhecendo suas necessidades. Zequinha, meu filho amado, que se tornou um símbolo para tantos, partiu em 2001, aos 52 anos.
Ao longo de nove décadas, pude testemunhar a transformação de um cenário em que a exclusão era quase regra para um presente em que artistas com síndrome de Down brilham na TV, no cinema e em exposições de arte. Em 2019, a Apae de São Paulo passou a se chamar Instituto Jô Clemente, e o mais gratificante nessa entidade que hoje leva meu nome é ver a continuidade da missão e seu impacto na vida das pessoas. O caminho que inauguramos culminou em mais de 18 milhões de testes do pezinho e na inclusão de ao menos 5 000 jovens no mercado de trabalho nos últimos doze anos.
Embora agora eu já não participe ativamente da gestão do instituto, sei que ele perpetua minha trajetória e a força da causa, inspirando a sociedade e reafirmando nosso compromisso em prol da inclusão. O que mais desejo deixar para o mundo é a esperança de que, com o avanço das pesquisas, a ciência nos guie para contornar os desafios das pessoas com deficiência, construindo um futuro em que a igualdade não seja apenas um ideal, mas uma realidade.
Jô Clemente em depoimento a Diogo Sponchiato
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944