Remédio amargo: o debate sobre projeto de lei para pesquisas clínicas
Aprovado no Senado, ele busca acelerar a participação brasileira na vanguarda científica, mas rende discussão sobre proteção aos voluntários
Desde que o médico escocês James Lind descobriu, no século XVIII, como salvar marinheiros que pereciam por escorbuto, doença causada pelo déficit de vitamina C, adicionando frutas cítricas à dieta, os ensaios clínicos se tornaram a melhor maneira de comprovar quais medidas realmente fazem a diferença na saúde e de desenvolver novos fármacos por meio da mobilização de voluntários acompanhados com rigor. De vacinas a analgésicos, passando pelas terapias celulares, qualquer medicamento digno de crédito em termos de segurança e eficácia precisa se submeter ao escrutínio de pesquisas com seres humanos após demonstrar seu valor em testes com células e animais.
Nessa seara, o Brasil é apontado como um decisivo polo para a criação de tratamentos promissores, tanto pela mão de obra qualificada como pela diversidade genética da população. Ainda assim, entraves estruturais e burocráticos limitam a participação do país no front científico. É com o objetivo de mudar essa situação e projetar a nação no cenário internacional que o Senado aprovou um projeto de lei (PL), em regime de urgência, a fim de atualizar as regras a serem adotadas por pesquisadores e empresas patrocinadoras de estudos, prevendo também os direitos dos pacientes envolvidos.
A discussão sobre mudanças no marco regulatório para os ensaios com humanos teve início em 2015, quando foi desenhado o primeiro texto a ser apreciado na Câmara dos Deputados, com o objetivo de estabelecer normas para dar celeridade à participação do Brasil em pesquisas globais. O plano era flexibilizar regras estabelecidas em 1996 e acompanhadas pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). A partir de 2017, começou a queda de braço por alterações em parágrafos cruciais do PL. O novo documento, que segue para sanção presidencial, recebeu aplausos, mas também críticas.
De um lado, parlamentares e representantes da indústria farmacêutica louvam as mudanças para reduzir burocracias nos trâmites e facilitar a inclusão do país nos estudos multicêntricos. “O Brasil ocupa a 20ª posição no ranking, com apenas 2% das pesquisas clínicas no mundo. Com essa lei, pode passar a figurar em 10 º lugar”, afirma Renato Porto, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). A entidade estima que o impacto positivo para a economia pode circundar os 5 bilhões de reais por ano ao atrair aportes estrangeiros. “O ecossistema de inovação depende de muito investimento e poderá beneficiar cientistas e universidades nacionais”, diz Porto.
Por mais que se tenha o progresso em mente, no projeto também há pontos sensíveis. Coordenadora do Sistema CEP-Conep, Laís Bonilha explica que assegurar a lisura dos testes e os direitos dos voluntários é bandeira indiscutível. “Mas a visão do PL coloca essas questões como uma barreira, o que não faz sentido, porque ninguém tem interesse em desenvolver pesquisas sem ética”, afirma. Ao longo dos debates no Congresso, a necessidade de análise pelo órgão foi mantida e o tópico que isentava patrocinadores de arcar com o ônus dos ensaios foi removido. Passou, no entanto, o artigo que determina que o acesso às drogas em testes será garantido aos voluntários até cinco anos após o início da oferta comercial, não mais “para sempre”. “Quando esse produto é benéfico para o participante, contudo, ele merece continuar recebendo e, às vezes, para o resto da vida”, diz Laís.
Um dos gargalos que a proposta quer diluir é a morosidade para captar voluntários para as grandes investigações. Nesse sentido, um aliado é a própria tecnologia: recursos como inteligência artificial já começam a ser usados para rastrear pacientes que poderiam se beneficiar de um tratamento experimental — o que representa, inclusive, uma alternativa de acesso à medicina de ponta. “Temos a missão de fazer com que estudos cheguem às mais diversas populações e periferias”, diz Juliana Mauri, fundadora da plataforma LifeTime, que busca fazer esse match acontecer. Ganham a indústria, os cientistas e, claro, quem enfrenta uma doença. “Eu me sinto privilegiada e queria que todos os pacientes tivessem essa oportunidade uma vez na vida”, diz a autônoma Jocy Silva, de 40 anos, voluntária em um estudo para o tratamento do câncer de mama. Que mais brasileiros tenham essa chance.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891