Remédio amargo: as novas regras do STF para pedidos de medicamentos na Justiça
Decisão ocorre em meio ao debate entre os limites das finanças públicas e o acesso da população a tratamentos complexos
De um lado, o paciente. De outro, o Estado. Em um impasse entre os dois, a oferta de terapias caras e ainda não contempladas e fornecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Nessas circunstâncias, a principal via para o cidadão receber uma medicação indisponível na rede pública — ou mesmo no rol dos convênios — é a judicialização. O meio, por vezes tortuoso, pode funcionar. No entanto, a conta que o governo terá de pagar pelo produto e os trâmites tendem a decolar. Como equilibrar os pratos dessa dura balança? A fim de dar racionalidade ao processo de se recorrer à Justiça para obter tratamentos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu arbitrar a questão ao definir que remédios fora da lista do SUS não poderão ser mais alcançados via liminar. Não é um ponto final na discussão, que opõe as restrições do erário a pacientes e familiares que convivem especialmente com doenças mais raras e complexas, visto que ainda será possível acionar os tribunais para pleitear medicamentos, mas agora diante de regras mais rígidas (veja o quadro). Ainda que amarga, ao menos sob a ótica de quem precisa do fármaco, a medida abre caminho a um debate mais maduro sobre a relação entre o direito à saúde, previsto pela Constituição, e a necessidade de lidar com algo finito como as verbas públicas.
Na última década, os processos nessa seara se avolumaram à medida que despontaram tratamentos avançados e capazes de controlar enfermidades antes sem opção terapêutica. Nem todos eles, porém, acabam incorporados ao SUS. Um exemplo: recém-aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a dose única de uma nova droga para crianças com distrofia muscular de Duchenne custa 17 milhões de reais. As liminares, nesse caso, chegaram a ser suspensas antes da aprovação, mas há a expectativa de que a injeção seja absorvida pelo sistema, embora isso não signifique acesso imediato — outro motivo de ações na Justiça.
O número de pedidos nos tribunais ganhou escala depois de 2020. Naquele ano, eram registrados 21 000 novos processos cifra que saltou para 61 000 em 2024. Na leitura dos ministros do STF, além dos impactos econômicos, o movimento desencadeava sobrecarga para os magistrados e levava a repercussões sociais, considerando que decisões voltadas a indivíduos podem ser amplificadas para o acesso universal. Pelas contas do Ministério da Saúde, atender às liminares resultou em um repasse de 1,8 bilhão de reais em 2022, 2,2 bilhões em 2023 e 1,9 bilhão até setembro deste ano. A pasta reconhece a importância da via para a garantia de direitos, mas sente o baque no orçamento. “A judicialização tem gerado o deslocamento de grandes recursos voltados a políticas amplas de acesso muitas vezes para terapias sem benefícios clínicos ou segurança comprovados”, afirma o ministério em nota a VEJA.
A nova normativa do STF resultou de uma proposta do ministro Gilmar Mendes e consumiu oito meses de conversas. Abrange qualquer medicação com registro na Anvisa e leva em consideração, entre outros pontos, se o aval à sua incorporação ao SUS foi negado de forma ilegal ou excessivamente lenta. As regras foram celebradas pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, que classificou a decisão da Suprema Corte como “um marco para o Brasil e o SUS”. Contudo, a resolução é vista com extrema preocupação por quem acompanha o dia a dia de pacientes com doenças graves ou raras. “Eles estão desesperados, porque sabem como demora para um tratamento chegar ao Brasil e a dificuldade de acesso”, diz Maria Cecília Oliveira, da Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves. “O paciente não quer entrar na Justiça, quer ter um direito respeitado.”
Entidades de defesa dos pacientes argumentam que a decisão restringe ainda mais as opções à mão dos médicos e defendem que drogas não experimentais aprovadas por agências internacionais similares à Anvisa poderiam ser oferecidas aos brasileiros. Já o ministério alega que traz tecnologias de ponta e, desde o ano passado, incorporou 46 terapias para doenças raras, tumores e condições crônicas. Nesse cenário à la escolha de Sofia, definir critérios não parece ser o elemento dissonante. A judicialização expressa, na visão de especialistas, a falta de políticas públicas sólidas. “Não temos ações para fazer transplantes de órgãos ou tratamento para o HIV no país, porque já existem planos bem executados nessas áreas”, diz o sanitarista Gonzalo Vecina, professor da USP. “Em algum momento, será preciso ponderar as prioridades, quebrar patentes de remédios, fazer acordos com a indústria.” Afinal, tratar uma doença não pode (só) depender do martelo de um juiz.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922