‘Recebi uma missão’, diz professora que perdeu avó, pai e mãe para a Covid
Vacinada, Tallyta Cerqueira quer ajudar a evitar novas tragédias
Tenho 32 anos e sou professora da rede municipal em Ponta Grossa, no Paraná. Talvez você tenha me visto no noticiário ou nas redes sociais e se sensibilizado com o cartaz que levei no dia em que, finalmente, fui vacinada. Essa era uma das intenções, além, claro, de homenagear quem não pôde estar comigo. Perdi minha avó Terezinha, 73 anos, meu padrasto, Wilson, 52, que sempre foi meu pai, e minha mãe, Inês, 53, em um espaço de dezoito dias, todos para a Covid-19. Não há como explicar a sensação de vazio, o peso dessa saudade. Às vezes ainda parece mentira, um pesadelo. Sinto dor e revolta, mas as mensagens de afeto que venho recebendo me ajudaram e encarar a tragédia de outra maneira.
Meu calvário começou em 14 de fevereiro, quando minha avó foi internada. Em seguida, meu marido, mãe, sogra, pai, eu e meu irmão testamos positivo. Meus pais foram internados e intubados e, de repente, os papéis se inverteram: eu e meu irmão de 22 anos tínhamos de cuidar de todos os nossos pilares — e de uma só vez! Tive de me afastar do serviço na escola. Quando minha avó piorou, o hospital nos chamou e sabíamos que poderia ser uma despedida. Pude pedir desculpas, agradecer-lhe por tudo, foi uma cena bonita. Ela viveu intensamente e foi uma mulher feliz.
Dois dias depois, de madrugada, uma nova ligação do hospital. Chegando lá, fomos informados de que meu pai não resistira a uma parada cardíaca. Nosso mundo desabou. Assumi o papel de irmã mais velha e tomei a frente. Cuidei de toda a parte burocrática, com a ajuda de meu esposo. Tive de ser forte, não havia outra opção. Enterramos meu pai a 120 quilômetros de casa, na cidade de Irati, ao lado do túmulo da mãe dele. Mais tarde, enfim, uma boa notícia: minha mãe melhorou e estava lúcida. Ela nem sequer sabia que meu pai tinha sido internado. Fomos orientados a contar-lhe tudo. Ela reagiu de forma serena, diferente do que normalmente faria. Acho que Deus permitiu que ela vivesse esses dias e conversasse com a gente para acalmar nosso coração. Ela se recompôs ao assistir à missa de sétimo dia do marido pelo Facebook e já estava fazendo planos para o futuro. Dias depois, piorou e também partiu.
No fim do ano passado, meus familiares insistiram para que eu me casasse no civil, mesmo sem poder fazer festa. Hoje vejo quanto ter realizado esse sonho foi importante. O sofrimento me uniu ainda mais ao meu irmão, que passou a morar comigo e arrumou um emprego justo no hospital onde meus pais faleceram. Tentei voltar ao trabalho, mas tive crise de pânico. Recorri a uma ajuda profissional e estou em acompanhamento. As mensagens de apoio vêm sendo essenciais. Tem gente que nunca me viu e se oferece para conversar. Até mesmo o padre Fábio de Melo me enviou solidariedade. A energia positiva contagia. A lembrança é constante, alguns dias são mais leves, outros mais pesados, mas sinto que recebi uma missão. Quando chegou minha vez de me vacinar, quis mostrar às pessoas quanto somos privilegiados. É revoltante saber que ainda há pessoas antivacina ou escolhendo qual imunizante tomar, fazendo festas clandestinas, negando a gravidade da situação. É muito egoísmo, falta de consciência e de empatia. Mas nem mesmo a essas pessoas eu desejo que passem pelo que passei.
Estou viva, vacinada e quero olhar para a frente e contar a meu filho que a morte de seus avós e de sua bisavó não foi apenas uma estatística, serviu de alerta. Sonho com o dia em que estaremos todos imunizados, sem receio de poder sair e distribuir abraços. Quero rever meus alunos e poder dizer que a dor que enfrentei não foi em vão. O melhor conselho que posso dar: aproveite cada momento com as pessoas amadas e que nunca mediram esforços para ver você feliz.
Tallyta Cerqueira em depoimento dado a Luiz Felipe Castro
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745