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Quando as fobias e manias viram motivo de preocupação para a saúde

O fenômeno é ainda mais crítico nestes tempos, mas existem saídas

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 09h49 - Publicado em 25 nov 2023, 08h00

Quem atravessou a pandemia de Covid-19 sabe o que é ficar com os nervos à flor da pele. Um número incalculável de pessoas experimentou dois estados psíquicos extremos diante da doença que se alastrava: a fobia do vírus e a mania por higiene. Estratégias naturais de autodefesa, claro, mas que, tantas vezes, levaram os cidadãos a vivenciar um suplício emocional. Essas circunstâncias simbolizam à perfeição um binômio de reações humanas: reforçam a sensação de proteção ou recompensa e, simultaneamente, tendem a ventilar ares doentios quando passam dos limites. E é essa fronteira entre o que se convencionou chamar de normal e o patológico que percorre O Livro das Fobias e Manias (Intrínseca), da escritora britânica Kate Summerscale, um inventário recém-­lançado de 99 pavores e obsessões humanas, demasiado humanas.

Trata-se de um tema em ebulição, não só pelos tempos pós-pandêmicos, mas por trazer à tona novas condições a atormentar pessoas de diversas idades e classes sociais. E talvez o melhor exemplo disso seja o que os cientistas batizaram de nomofobia, a aflição alucinante de ficar sem acesso ao celular ou no modo off-line. O fato é que fobias e manias acompanham o Homo sapiens desde remotas eras. O medo, ainda que exagerado, era (e é) resposta fisiológica contra criaturas ou situações potencialmente ameaçadoras. E não é à toa que todo mundo tem certo receio de se escorar numa varanda no 20º andar de um edifício ou fica com o pé atrás diante de uma aranha. No entanto, algumas pessoas entram em pânico só de imaginar cenas assim, tendo inclusive calafrios, taquicardia e até desmaios. Do mesmo modo, mas na outra ponta do espectro, atividades que nos dão alguma espécie de gratificação são essenciais para nos sentirmos animados e dispostos. Porém, quando se transformam em compulsões, conduzem o indivíduo a um mundo cujo sentido só se expressa ao repetir determinado comportamento — comprar, mentir, limpar etc.

Depois de farta investigação, em cima de periódicos médicos, tratados de psicologia e documentos históricos, Summerscale expõe não só condições relativamente comuns como comportamentos exóticos e bizarros, que nos convidam a pensar até onde pode ir a mente humana.“Fiquei comovida com muitos dos casos que pesquisei: a menina malaia aterrorizada com barulhos, mesmo com o ruído de sacos plásticos; o psiquiatra chileno atormentado pelo medo de enrubescer; a jovem americana que tinha tanto receio de sujeira que não suportava tocar em jornais e notas de dinheiro e nas próprias roupas”, disse a escritora a VEJA. “E há episódios fascinantes que, à primeira vista, parecem bastante estranhos, como a mania por dança que tomou conta de aldeias na Europa medieval.”

Ao consultar as páginas do livro, fica evidente que não há fim para as fobias e manias da nossa espécie. Tem de tudo no catálogo: medo de insetos, cobras, escuridão, sangue, avião, injeção, dentista… Compulsão por ler, roer as unhas, arrancar cabelos, roubar… “É impressionante ver as obsessões secretas com as quais muitas pessoas vivem. Obsessões até por determinadas palavras ou números”, afirma Summerscale. Mas há uma pergunta que não quer calar: o que distingue uma fobia ou mania patológica de uma reação ou comportamento excêntrico? Em outros termos, quando elas viram transtornos mentais? “Todos nós temos medos e desejos irracionais. É quando eles se tornam extremos e incapacitantes que se qualificam como distúrbios psíquicos”, responde a autora do livro.

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SUPORTE HIGH-TECH - Realidade virtual: recurso extra na terapia para dessensibilizar fobias de bichos e de avião (SeventyFour/Shutterstock)

Não é tarefa fácil calcular o percentual de pessoas que seriam diagnosticadas dessa forma. Primeiro porque fobias e manias dependem, em certo grau, do ambiente e da cultura em que se está imerso. Segundo porque nem sempre as vítimas procuram ajuda especializada, seja por sentir vergonha, seja por achar que não se trata de um problema a ser resolvido em consultório. Com base em suas pesquisas, Summerscale estima que uma em cada dez mulheres e um entre vinte homens padecem de fobias passíveis de detecção e tratamento. “As manias são mais difíceis de quantificar, pois fazem parte de uma série de condições, como dependência e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)”, diz a britânica. E esse ponto merece ser sublinhado, porque, inúmeras vezes, os pavores e as fixações são manifestações ou integrantes de outras doenças mentais, a exemplo de ansiedade, vício ou depressão.

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Fobias e manias dividem o mesmo livro por serem como dois lados de uma moeda. “A primeira é a compulsão por evitar algo; a segunda, a compulsão por fazer algo”, resume Summerscale. E porque também refletem não só receios e anseios íntimos como dores e sonhos coletivos. Se a musofobia, o medo extremo de ratos, fez vilas inteiras saírem para caçar os animais até o século XX, na Idade Média povoados foram tomados por ondas de coreomania — uma obsessão por dançar até perder as forças — e demonomania — surtos de possessão que se alastravam sobretudo entre mulheres. Mais recentemente, na década de 1960, os críticos classificaram de Beatlemania a loucura dos fãs pela banda de Liverpool. A ideia até era apontar o dedo para um comportamento errático do público, que perdia literalmente o ar diante do grupo, mas, com os anos, a expressão tornou-se emblema de fã-­clube e de uma autêntica logomarca.

No frigir dos ovos — e cabe dizer que existe até “ovofobia” —, o caldo das compulsões é repleto de nuances, confusões, sofrimentos reais e até brincadeiras. Convenhamos que não dá para levar a sério algo como “hipopotomonstrosesquipedaliofobia”, ou simplesmente “sesquipedaliofobia”, a aversão por palavras longas. Em paralelo, boiam em sua superfície questões que, longe de serem diagnósticos clínicos, denunciam preconceitos, posturas e visões sociais, caso de xenofobia (a ojeriza a estrangeiros) e a homofobia (a homossexuais), que ainda hoje alimentam ondas de discriminação e ataques mundo afora.

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CLEPTOMANIA - Impulso por roubar: ele independe de necessidade (Jovanmandic/Getty Images)
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O assunto, portanto, pode ser preocupante, como preocupante também é a dor emocional de alguém que se vê preso ou limitado em seu dia a dia por fobias ou manias. Enquanto condições de saúde, elas figuram, de forma isolada ou dentro de outros distúrbios, em documentos médicos como o influente DSM-5, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria. As fobias são frequentemente variações de ansiedade, enquanto as manias podem escancarar casos de TOC ou transtorno bipolar. Em comum, são quadros que demandam a avaliação e o apoio de um profissional. E aí reside um dos principais obstáculos em seu tratamento: a busca por assistência especializada. “É da natureza dos comportamentos compulsivos que eles nos confortem antes de nos controlarem, assim como podemos ter medo de abandonar o que nos distrai e acalma”, diz Summerscale. “Mas somente quando sentimos que nós — ou aqueles de quem gostamos — estamos sendo prejudicados por nossos pensamentos ou ações obsessivas é que podemos procurar ajuda”, completa a autora do Livro das Fobias e Manias.

Album
CONTÁGIO SOCIAL - Coreomania: aldeias passavam a dançar loucamente até pessoas desfalecerem na Idade Média (AKG/Fotoarena/.)
CAPA-O-LIVRO-DAS-FOBIAS-E-MANIAS.jpg
O LIVRO DAS FOBIA E MANIAS, de Kate Summerscale (tradução de Renato Marques; Intrínseca; 320 páginas; 59,90 reais e 39,90 reais o e-book) (./.)
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Vencida a barreira do diagnóstico, hoje a medicina conta com vastos recursos para domar compulsões patológicas. Boa parte dos pacientes tira proveito da psicoterapia e da chamada terapia de dessensibilização, por meio da qual pessoas fóbicas são expostas gradativamente à situação que as assusta tanto. E até a tecnologia se tornou aliada nessa empreitada. Experimentos com realidade virtual se mostram bem-sucedidos para aplacar a fobia social (a aversão de estar e falar em público) e o medo de avião, por exemplo, como demonstram pesquisas conduzidas na Faculdade de Medicina da USP. Nesse modelo, o paciente entra em contato com as circunstâncias penosas primeiramente em um ambiente recriado digitalmente — basta utilizar óculos especiais conectados ao programa de computador. A proposta já chegou a consultórios de psicoterapeutas.

Entre as manias duras na queda, que incluem a obsessão por fazer compras e arrancar pelos ou cabelos a ponto de lesar a pele, além das sessões de terapia, medicamentos podem ser prescritos para regular áreas do cérebro que regem nossos impulsos e satisfações. A questão crucial, a despeito do que nos apavora ou nos induz a repetir sucessivamente qualquer coisa, é se conscientizar de que, se aquilo interfere na rotina e na saúde, pode (e deve) ser combatido com as ferramentas à disposição de psicólogos e médicos. No fundo, fobias e manias integram esse complexo pacote da mente humana: a mesma que constrói soluções para as armadilhas que ela pode plantar.

Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869

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