Problema de saúde pública, uso de anabolizantes transforma coração de jovens em bomba-relógio
Estudo pioneiro do Incor investiga impactos da substância; além de danos ao coração, uso indevido pode causar desde infertilidade até prejuízos à saúde mental

No início dos anos 2000, o mundo do esporte caminhava na corda bamba. Ressoava o escândalo do doping de nadadoras como a chinesa Yuan Yuan, em segredo de polichinelo, flagrada com frascos de hormônio escondidos na bagagem a caminho de uma competição preparatória para a Olimpíada de Sydney. Na outra ponta, fez-se muito barulho com uma ideia questionável: se os anabolizantes já estavam amplamente disseminados, a química a favor da contravenção, e os riscos ainda soavam como hipótese, por que não legalizá-los nas competições? O acalorado debate alimentou uma ideia da cardiologista Janieire Alves, do Centro de Pesquisa Clínica do Instituto do Coração, o InCor, de São Paulo: investigar os efeitos reais desses “atalhos” no sistema cardiovascular de cidadãos comuns. Na época, embora os números não fossem tão expressivos como os de hoje, já se via jovens procurando atendimento por falhas no coração, especialmente atletas e fisiculturistas. “Era um evidente problema de saúde pública que batia à porta”, diz Janieire.

Aquela iniciativa do InCor — passadas duas décadas de pesquisas publicadas em revistas científicas de prestígio — era a antessala de um problema que, em tempo de culto à aparência multiplicado pelas redes sociais, se transformou em prática corriqueira. Vive-se uma epidemia silenciosa e socialmente aceita. Levantamento da Anvisa mostra que, de 2018 a 2023, houve um crescimento de 670% nas vendas de esteroides anabolizantes no Brasil. E os danos são cada vez mais observados. Dados recentes do InCor, ainda não publicados, peça de doutorado do cardiologista David Salazar, sob orientação de Janieire, trazem revelação preocupante: entre 976 casos de infarto registrados em jovens, 77% usavam cocaína; 7% anabolizantes e 10% faziam uso combinado das drogas. “Pode parecer pouco, mas, em escala populacional, o impacto é grande”, afirma a cardiologista.
Dados da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) entregam resultados igualmente assustadores: um em cada dezesseis estudantes já usou anabolizantes. De 1996 até hoje, houve aumento de 39% no uso dessas substâncias hormonais entre os alunos do nível fundamental; 67% entre os do ensino médio; e 84% entre os do terceiro e último ano do médio. Não bastasse a estatística, uma recente apreensão policial ajuda a dar a dimensão do problema. Na terça-feira 5, a Polícia Civil de São Paulo prendeu 25 pessoas em uma operação contra uma organização criminosa acusada de fabricar e vender ilegalmente anabolizantes em todo o país. A quadrilha comercializava os produtos livremente pela internet sem exigência de receita médica.

Parece não haver dúvida: se há espaço para o mercado ilegal, é porque existe demanda. Dá-se o perigoso casamento entre padrões estéticos inatingíveis e interesses financeiros. Não há levantamento concluído, mas sabe-se, dentro dos consultórios e nas sombras do mercado paralelo, que o perfil dos usuários mudou — já não se trata de atender a turma da malhação de academias, os fortões de músculos artificialmente esculpidos, mas homens em busca de maior vigor sexual, mulheres em busca de emagrecimento a jato e aquelas que, na entrada do climatério e da menopausa, caem nas mãos de charlatões especializados em fazer sem critério alguma reposição hormonal nessas fases.
Há profissionais com especializações inexistentes, como a chamada “hormonologia”, que prescrevem hormônios como solução para queixas genéricas: cansaço, ganho de peso e depressão. A engrenagem dessa panaceia de araque se completa com farmácias de manipulação que, amparadas por brechas na legislação, produzem em larga escala essas substâncias, especialmente na forma dos ruidosos implantes hormonais, os chamados “chips da beleza”, vetados oficialmente em 2024.

A estética ainda dá o tom, mas agora a retórica é outra: “modulação hormonal”, “medicina antienvelhecimento” e reposição hormonal — esse, sim, conceito seriíssimo e comprovado, mas que vem sendo banalizado e distorcido. “O normal virou patológico”, diz o endocrinologista Clayton Macedo, diretor da SBEM. “O médico mostra o exame e diz: ‘Olha como está abaixo, vamos repor com implante’.” No mundo masculino, a lógica é parecida: a chamada “testosterona baixa”, que deve ser analisada com critério clínico, virou desculpa para prescrever bombas disfarçadas de reposição. É ciclo nocivo, porque, infelizmente, quem vai ao espelho vê bons resultados. Os anabolizantes oferecem resultados atrativos: os músculos crescem, a energia aumenta. Mas a conta chega, e rápido. “É como pôr um motor de Fórmula 1 num carro popular. Ele até aguenta por um tempo, mas uma hora vai fundir”, afirma Janieire Alves, do InCor.
Transformando a coleta de urina de jovens infartados em um protocolo pioneiro, o InCor vem, aos poucos, ampliando as descobertas sobre o mecanismo de ação dessas substâncias. Antes, os danos mais comuns eram ligados ao entupimento das artérias, agravado por alterações no nível do colesterol. Hoje, embora o mecanismo prevaleça, novos padrões têm surgido. “Muitos jovens infartam sem obstrução, porque o esteroide lesa diretamente a parede dos vasos, gerando coágulos que bloqueiam o sangue e causam infarto”, afirma Janieire. Outro ponto crítico é o uso de medicamentos para tentar neutralizar os efeitos colaterais. Aumentou a pressão? Usa-se anti-hipertensivo. Crescimento de mamas em homens? Inibidor hormonal. Essas combinações postergam os danos, mas não os evitam. E, ao serem notados, muitas vezes estão em estágio avançado.
Além disso, há efeitos visíveis, como acne, queda de cabelo, virilização em mulheres, além de disfunções endócrinas, como atrofia testicular e infertilidade. E o fígado também não sai ileso. Quem acompanha isso de perto é o hepatologista Raymundo Paraná, referência nessa área no Brasil. “Só neste ano, tivemos cinco internações por trombose e vários casos de câncer de fígado, todos a partir do uso indevido de anabolizantes.” A explicação: os compostos dilatam os canais por onde o sangue flui no interior do fígado. Essa dilatação desorganizada favorece o acúmulo e o rompimento dos vasos, com risco de hemorragias. Em mulheres, há aumento de gordura no fígado e resistência à insulina. O uso prolongado pode ainda estimular tumores hepáticos.

Não se deve pôr de lado também os impactos na saúde mental. O uso de esteroides pode provocar oscilações de humor, agressividade, ansiedade, insônia e, em pessoas vulneráveis, até quadros psicóticos. Mesmo depois da interrupção, os efeitos continuam: o corpo sai de uma produção artificialmente elevada de hormônios para um estado de bloqueio da produção natural. “É uma espécie de montanha-russa química”, diz o psiquiatra Fernando Fernandes, do Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP. Há ainda a dependência psicológica: a pessoa se acostuma com o físico e a sensação de potência e, ao parar, passa a se perceber menor, mais fraca, mesmo que essa não seja a realidade. Diante disso, não resta dúvidas: o avanço descontrolado do uso de anabolizantes já cobra seu preço.
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2025, edição nº 2956