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Pesquisa agraciada com o prêmio IgNobel refuta ideia de ‘zonas azuis’ de longevidade

Demógrafo vasculhou evidências e questiona validade de um conceito que elege locais e hábitos propícios para alguém virar um centenário

Por Carlos Orsi/ Revista Questão de Ciência*
24 set 2024, 12h42

Um sinal do encolhimento do espaço para ciência na imprensa brasileira é a esnobada séria que o Prêmio IgNobel deste ano levou entre os grandes veículos. O que é uma pena, porque entre os ganhadores de 2024 há um pesquisador que explodiu um mito que o jornalismo nacional havia engolido com linha, anzol e chumbada, o mito das “zonas azuis” de longevidade.

Faz pouco mais de um ano que escrevi aqui criticando todo o conceito de “zonas azuis”: a ideia de que certas regiões do planeta, supostamente habitadas por um número desproporcional de pessoas com mais de 100 anos, teriam desvendado o “segredo da vida supercentenária”. O assunto foi tema de documentário de sucesso lançado pela Netflix.

Minha crítica baseava-se na interpretação ingênua da aparente correlação entre certos hábitos (comer mel, fazer longas caminhadas…) e a suposta longevidade. Trata-se da falácia do viés de sobrevivência: ver quem teve êxito em alguma atividade e tentar fazer uma “engenharia reversa” do processo que levou ao sucesso.

Soa como puro senso-comum, mas falha ao não adotar controles adequados: não é porque dois ou três multibilionários têm o hábito de acordar às quatro da manhã que acordar de madrugada faz alguém ficar rico – pergunte aos motoristas de ônibus e aos catadores de lixo. “Receitas de sucesso” (ou “de longevidade”) só fazem jus ao nome se soubermos que existe uma proporção significativa de bem-sucedidos dentro do universo total das pessoas que as adotam, e mais: que o número também supera significativamente a taxa de bem-sucedidos que não seguem nenhuma das tais recomendações.

E se, a despeito dos poucos bilionários que se levantam antes do Sol, na verdade 99% dos demais dormirem até o meio-dia?

Onde mora o erro

O trabalho premiado com o IgNobel e publicado no repositório BioRxiv, de autoria do demógrafo Saul Justin Newman, do University College London, foi além dessa crítica filosófica; Newman buscou outros “fatores comuns” presentes nas supostas zonas de alta longevidade e descobriu uma forte prevalência do que chamou de fatores “anti-saúde”: pobreza, miséria, alto desemprego, alto índice de analfabetismo, baixa expectativa média de vida, alta criminalidade – e, crucialmente, ausência de bons registros confiáveis de nascimento e de óbito.

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(Como todo material disponibilizado no BioRxiv, o levantamento de Newman não passou por revisão de pares – mas, até aí, os livros, reportagens e documentários que promovem o culto das “zonas azuis”, também não.)

Nos Estados Unidos, o maior “preditor” da prevalência de supercentenários (pessoas acima dos 100 anos) numa população é a ausência de certidões de nascimento no início do século 20. “No total, 82% dos registros de supercentenários nos EUA são anteriores à adoção de certidões de nascimento em seus estados. Quando esses estados passam a ter cobertura total de certidão de nascimento, o número de supercentenários cai 82% ao ano”.

“Eu rastreei 80% das pessoas com mais de 110 anos no mundo (os outros 20% são de países que você não consegue analisar significativamente). Destes, quase nenhum tem certidão de nascimento. Nos EUA, há mais de 500 dessas pessoas; sete têm certidão de nascimento”, disse ele numa entrevista concedida a The Conversation após receber o IgNobel.

Newman documenta erros de registro em vários outros focos de “zonas azuis”, como Costa Rica (“em 2008, revelou-se que 42% dos costa-riquenhos com mais de 99 anos haviam ‘se enganado’ ao apontar suas idades no censo de 2000”); em 2010, “descobriu-se que mais de 230 mil centenários do Japão haviam desaparecido, eram imaginários, representavam erros burocráticos ou restavam mortos”. Em 2012, a Grécia determinou que 72% de seus centenários, na verdade, já tinham morrido – um provável indício de fraude previdenciária.

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O pesquisador avança a tese de que não somente o marketing das zonas azuis – que envolve turismo, o comércio de produtos “naturais” dessas áreas, ou “inspirados” por elas, além de livros, cursos, programas de televisão, etc. – carece de base, mas de que toda a pesquisa demográfica sobre longevidade extrema baseia-se em dados contaminados: que há indícios fortes de fraude, mentira ou engano por parte significativa dos que se declaram supercentenários.

Ele cita estudo conduzido nos Estados Unidos que mostrou que centenários têm índice de massa corporal, taxas de atividade física, tabagismo e consumo de álcool semelhantes (ou piores!) do que as taxas da população que serviu como base de comparação, que era 35 anos mais jovem.

Newman oferece quatro hipóteses para explicar como seria possível sobreviver dos 65 aos 100 anos fumando mais, bebendo mais, comendo pior e fazendo menos atividade física a cada ano: ou esses comportamentos não causam mortalidade; ou causam mortalidade, mas as vidas perdidas são “compensadas”, na estatística, por erros burocráticos nos registros de idade; ou os centenários realmente são mais beberrões e gostam mais de tabaco; ou os beberrões e fumantes idosos mentem a idade.

Fascínio sem pé na ciência

O autor dá um exemplo hipotético para mostrar como uma pequena taxa de erro ou fraude em registros de idade pode, ao longo do tempo, gerar uma superpopulação espúria de supercentenários. Imagine que um homem de 50 anos decide mentir que tem 60, talvez para reivindicar algum tipo de benefício previdenciário.

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Quando a maioria das pessoas que, no momento em que a fraude era cometida, realmente tinham 60 anos começar a morrer – digamos, a partir dos 85 anos – nosso personagem ainda terá, na verdade, a idade biológica de 75. Se viver até os 95, sua idade oficial, registrada em documentos, será de 105. Dado o pequeno número de supercentenários, bastam poucas situações semelhantes para distorcer as estatísticas – e os lugares onde há mais incentivo para fraudes assim são exatamente aqueles onde a dependência de benefícios previdenciários, trazida pela pobreza, é maior; caso da maioria das “zonas azuis”.

“As regiões onde as pessoas mais frequentemente chegam aos 100-110 anos são aquelas onde há mais pressão para cometer fraudes previdenciárias, e também têm os piores registros civis”, disse Newman, na mesma entrevista.

Lendo o artigo de Newman e relembrando a série da Netflix, me ocorreu que o fascínio das “zonas azuis” deriva – entre outras coisas – de um fascínio romântico pelo modo de vida de “gente simples”, de uma visão lírica a respeito dos supostos méritos purificadores da pobreza, da vida rústica e do isolamento rural (que, claro, só quem não é pobre, vive no conforto e mora em centros urbanos pode ter). É um populismo condescendente convertido no mais crasso dos comercialismos.

* Carlos Orsi é jornalista, autor dos livros Ciência no Cotidiano e Que Bobagem! (Editora Contexto) e editor-chefe da Revista Questão de Ciência, onde este texto foi originalmente publicado

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