Os limites da vacina anunciada por Vladimir Putin
O projeto do imunizante leva o nome do programa espacial soviético do tempo da Guerra Fria. O receio: ser apenas movimentação política
Dado a movimentos simbólicos, ora atrelado a imagens que remetem ao passado comunista da União Soviética, ora ao tempo dos czares, o presidente russo Vladimir Putin parecia estar incomodado ao ficar de fora do tabuleiro da nova Guerra Fria disputada entre a China e os Estados Unidos. Na terça-feira 11, ao anunciar a aprovação, em tempo recorde, de uma vacina contra o novo coronavírus, ele se pôs de volta no centro da cena. Como um alquimista moderno, misturou doses cavalares de ideologia com pitadas de saúde e inaugurou um ruidoso debate internacional que pode ser resumido em única indagação: o imunizante desenvolvido pelo Instituto Gamaleya, de Moscou, é confiável? Para quem, a partir dos centros de pesquisa, acompanha os contorcionismos do neoczar, a trilha é clara. “Putin não tem vacina, ele está apenas fazendo uma declaração política”, disse John Moore, virologista do reputado Weill Cornell Medical College, de Nova York. Não por acaso, ao entrar no combate contra a Covid-19, o mandachuva batizou seu projeto de Sputnik. É evidente referência ao bem-sucedido foguete espacial lançado em 1957 por Nikita Kruschev, no auge da queda de braço com os Estados Unidos, em feroz duelo de tecnologia e ideias.
Como a briga, agora, envolve a tão esperada saída da pandemia, e o mundo inteiro só pensa nisso, Putin trocou esferas de aço levadas ao cosmo por microscópios de última geração. O Sputnik é outro. Não é o caso de negligenciar o evidente jogo de poder e tampouco arremessar na lata de lixo uma iniciativa científica que, ao fim e ao cabo, pode vir a ser positiva. Convém, contudo, mergulhar um pouco mais no desenvolvimento do medicamento divulgado com estardalhaço para entender como foi possível tanta rapidez e quais são os riscos da pressa — e nunca é tarde para lembrar que, do ponto de vista internacional, o fracasso de uma panaceia celebrada com altivez terá custo constrangedor para Putin. Há uma primeira e fundamental desconfiança: a aprovação do produto antes da derradeira fase 3 de testes em humanos. É justamente essa etapa que comprova a eficácia da vacina na prevenção da doença e segurança de aplicação em milhares de pessoas. Os antivirais são um grande avanço da medicina e estão entre os produtos médicos mais seguros. É graças a elas que a civilização erradicou a varíola e controlou outras doenças, como a pólio e o sarampo. O sucesso só foi possível em virtude da constante evolução do rigor dos ensaios clínicos que validam o benefício e o crédito de um imunizante.
Para ser aprovada, uma vacina precisa passar por quatro etapas de testes, sendo uma pré-clínica, realizada em animais, e outras três fases clínicas, em humanos. Na derradeira etapa, essa que os russos saltaram, dezenas de milhares de pessoas recebem a substância ou um placebo e depois espera-se até que esses cidadãos tenham contato com o vírus, no cotidiano. O antiviral será eficaz se a quantidade de voluntários doentes no grupo protegido for significativamente menor do que entre aqueles que receberam o placebo. Mesmo que os resultados das fases iniciais sejam positivos, porém, os testes de fase 3 podem falhar. A vacina contra o HIV é um exemplo. Diversas candidatas foram desenvolvidas e avançaram para testes em pessoas, mas nenhuma passou pelas exigências finais do último capítulo. O padrão de exigência para aprovação de um imunizante é ainda mais alto que o de um medicamento, por exemplo. Isso decorre do fato de as vacinas serem administradas em pessoas saudáveis.
A Organização Mundial da Saúde exige que todas as vacinas (são 167 em investigação contra a Covid-19) passem pela totalidade de estágios de testes antes de serem lançadas. Na lista da OMS, a candidata russa está classificada na fase 1. De acordo com o ministro da Saúde da Rússia, Mikhail Murashko, “todos os voluntários desenvolveram grande quantidade de anticorpos” e “ninguém teve graves complicações”. Contudo, nenhum resultado foi publicado em revistas científicas e pouco se sabe sobre a vacina. Especialistas temem que lançar uma substância inadequada ponha em risco não só a saúde das pessoas que vão recebê-la, como também a credibilidade em relação à qualidade das imunizações em geral. “A confiança é crucial para a adesão da população. O não cumprimento das exigências básicas para o desenvolvimento de um antiviral pode gerar medo. E não só dessa vacina, mas de qualquer uma contra a Covid-19”, diz Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações.
Sem certezas e na ânsia de soluções, as autoridades de alguns países tomaram a estrada de Putin. Em 12 de agosto, o governo do Paraná assinou um memorando de entendimento com a Rússia para o desenvolvimento da vacina, durante uma reunião que contou com a participação de representantes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e do Ministério da Saúde. Como adiantou a seção Radar on-line, de VEJA, o governo brasileiro já estava em contato com a Rússia para discutir a produção do imunizante. O documento assinado não garante nada. Apenas oficializa a intenção de trabalho conjunto entre os dois países para a realização da última fase de estudo e para produção da vacina. O problema: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda não recebeu pedido de autorização de protocolo de pesquisa ou de registro, como ocorreu com outras iniciativas, como a da Universidade de Oxford em parceria com a AstraZeneca, a da farmacêutica chinesa Sinovac Biotech em parceria com o Instituto Butantan e a do gigante Pfizer em aliança com a empresa alemã BioNTech — todas com programa de voluntários no Brasil.
Os resultados iniciais dessas avaliações devem ser divulgados entre outubro e dezembro, o que poderá abrir caminho para a aprovação de uma outra proteção ainda em 2020. Cerca de 30 milhões de doses chegarão ao Brasil até dezembro, das versões britânica e chinesa (faz-se a compra antecipadamente, mesmo com risco). Quanto ao projeto Sputnik, é o caso de vacinar-se contra a vacina russa. Para o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, “não existe bala de prata no momento”. Mas é o que se procura.
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700