Os impactos da aprovação comercial da principal técnica de edição de DNA
Abre-se uma avenida de tratamentos inovadores e com potencial de cura
Tem toda a pinta de ficção científica, mas já é uma realidade palpável. Em fração de duas décadas, as descobertas que deram origem a um método conhecido pela sigla CRISPR-Cas9 foram laureadas com um Prêmio Nobel, mobilizaram centenas de estudos, milhões de dólares e alcançaram um marco histórico: a agência regulatória do Reino Unido deu sinal verde, de forma pioneira, à primeira terapia baseada em edição genética. Ela poderá levar à remissão de quadros graves de doença falciforme e talassemia beta, dois distúrbios do sangue por trás de sintomas incapacitantes como anemia severa e dores intensas. Tudo indica que a decisão será seguida pelo governo americano e outras nações, inaugurando uma era de tratamentos sem precedentes para uma porção de enfermidades — alguns deles, quem sabe, com possibilidade curativa.
O CRISPR é fruto de anos de estudos envolvendo pesquisadores de vários campos da química e da biologia, mas dois nomes foram cruciais para a inovação ter aplicação prática e clínica: a francesa Emmanuelle Charpentier e a americana Jennifer Doudna, não à toa consagradas pela Academia Sueca em 2020. A dupla de cientistas investigou um comportamento um tanto interessante da bactéria Streptococcus pyogenes, que causa uma simples amigdalite mas também pode levar a uma infecção generalizada. Ao se defender do ataque de um vírus — sim, vírus atacam bactérias —, esses microrganismos capturam pequenas partes do genoma viral e as guardam no próprio DNA — eis o que se batizou de matriz CRISPR. Quando vem um novo bombardeio virológico, as bactérias já são capazes de se lembrar da sequência e tal matriz se conecta aos genes do invasor. Entra em ação, nesse ponto, uma enzima, a Cas9, que picota o DNA viral e o inativa. Esse mecanismo natural foi a fonte de inspiração para a técnica que ganhou o apelido de “tesouras genéticas”: por meio de um corte preciso, ela permite interferir em sequências de qualquer DNA, incluindo o humano.
O primeiro tratamento que recorre a essa estratégia a receber aprovação, o Casgevy, foi desenvolvido pelas empresas de biotecnologia Vertex Pharmaceuticals e CRISPR Therapeutics. Elas realizaram dois estudos clínicos com resultados animadores. No caso da doença falciforme — um quadro mais comum na população afrodescendente e, por isso, de maior prevalência no Brasil —, 28 dos 29 pacientes tratados não relataram mais sintomas como dores excruciantes após a intervenção. No caso da talassemia beta, outra condição hematológica, a taxa de sucesso foi de 93%, sendo que a maioria dos voluntários pôde abrir mão das transfusões de sangue regulares necessárias para controlar a enfermidade. Os benefícios foram mantidos por um ano em ambas as doenças, que abalam a qualidade de vida e podem levar à morte. “Até o momento, um transplante de medula óssea, que deve ocorrer de um doador estreitamente compatível e mesmo assim apresenta risco de rejeição, tem sido a única opção de tratamento permanente a esses pacientes”, diz Julian Beach, membro da Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos de Saúde do Reino Unido.
Os efeitos do CRISPR impressionam até quem conhece a fundo o mundo das terapias gênicas. “Tive a oportunidade de estar em um encontro internacional em Londres onde vi o depoimento de uma mulher com anemia falciforme tratada dessa nova forma. A vida dela agora é outra”, diz Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP. Tamanho sucesso empolga, mas não vem isento de uma série de desafios operacionais. O procedimento em si é um deles. “O tratamento não é algo fácil ou banal, porque é preciso retirar as células do paciente, alterá-las em laboratório e fazer a reintrodução no organismo”, afirma a geneticista. “A pessoa precisa ficar internada por até dois meses.”
Outro gargalo é o preço. Um artigo publicado no periódico científico Nature estima que o valor final da terapia possa chegar a 2 milhões de dólares, algo perto de 10 milhões de reais, por pessoa. Isso não significa que os pacientes devem perder as esperanças. As soluções mais avançadas são lançadas a cifras exorbitantes e é a difusão ao redor do globo, por meio de aquisição pelos governos e concorrência entre empresas, que torna o acesso mais democrático. A chegada das inovações ainda alimenta uma reação em cadeia para encontrar novas saídas adaptadas a diferentes realidades.
É nesse contexto que podemos celebrar pesquisas com CRISPR em desenvolvimento no Brasil. Um dos projetos tem como alvo justamente a doença falciforme, que encontra no país uma situação diferente do cenário britânico. Segundo o Imperial College Healthcare NHS Trust, que conduziu o ramo inglês dos estudos que culminaram na liberação da terapia, há 15 mil pessoas que vivem com a condição por lá. Também chamada de anemia falciforme, a doença afeta principalmente a população preta e parda e, segundo o primeiro levantamento a respeito do Ministério da Saúde, divulgado em outubro, existem de 60 000 a 100 000 pacientes por aqui. “No mundo, a doença até é considerada rara, mas, no Brasil, não é desprezível em termos de prevalência. É condição grave que atinge sobretudo uma população desprivilegiada”, diz Ricardo Weinlich, líder do grupo de terapia gênica do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, que trabalha na elaboração de uma tecnologia com esse princípio para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Sob qualquer ângulo, o CRISPR é um divisor de águas por dar uma resposta com precisão cirúrgica a problemas antes vistos como impossíveis de serem resolvidos. Se o fundo genético foi um dia um fator limitante, agora ele é fundamental para o uso do método. “Desde que se estabeleça que a variante genética é a causa da doença, ela poderá ser alvo de uma terapia gênica”, afirma Weinlich. Esse olhar tem impulsionado estudos para testar essa e outras abordagens focadas no DNA para controlar quadros de hemofilia (distúrbio da coagulação sanguínea), problemas oculares que resultam em cegueira e disfunções mais raras que limitam o desenvolvimento e a qualidade de vida de crianças e jovens. Até mesmo o câncer está na mira. Em um experimento publicado na revista acadêmica Science Translational Medicine, a técnica de edição genética entrou em ação para tratar seis crianças com leucemia grave e refratária ao tratamento tradicional. No caso, as tesouras mágicas foram utilizadas para alterar e habilitar células de defesa a reconhecer e destruir tumores — procedimento conhecido como CAR-T. No estudo, quatro voluntários tiveram remissão em 28 dias e puderam receber o transplante de medula. Há promessas à vista, inclusive no Brasil. “Usamos o CRISPR para entender melhor mecanismos envolvidos na biologia do tumor e também para buscar turbinar o sistema imune contra a doença”, diz Martín Bonamino, pesquisador do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Por mais que seja um avanço e que as manifestações de uma doença desapareçam, a edição genética não significa necessariamente a cura. A alteração feita por esse rebuscado processo de “cortar e colar” tem como fim a correção para o controle efetivo de uma patologia, mas tanto a mutação de base quanto as sequelas podem permanecer. A compreensão desse cenário e dos limites para a aplicação do método é crítica também para nortear os princípios éticos que balizarão as pesquisas e aprovações com a tecnologia. Um exemplo emblemático dessa discussão envolveu o cientista chinês He Jiankui. Em 2018, ele anunciou a modificação genética de embriões para fertilização in vitro e, assim, trouxe ao mundo gêmeas com DNA resistente à infecção pelo HIV, o vírus causador da aids. Mas fez a experiência sem as autorizações necessárias dos comitês de pesquisa — e numa situação para a qual existem outras saídas e faltam evidências de segurança. Condenado pela Justiça, ele passou três anos na prisão.
O caso chocou a comunidade médica e alertou as autoridades sobre o risco de rompantes de eugenia quando regras éticas são desrespeitadas. Mas não tira o brilho do CRISPR, uma ferramenta engenhosa capaz de silenciar doenças que arrasam vidas e impactam a sociedade como um todo. O marco regulatório da sua primeira aprovação fora dos muros do laboratório mostra que esse futuro já começou. E, respeitando o rito da ciência, a revolução poderá ser feita sem atropelos.
Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870