O que pode explicar o crescimento preocupante de doenças e tumores no intestino
A ciência já suspeita dos motivos

Poucos órgãos do corpo humano sentiram tanto o baque das transformações no estilo de vida nas últimas décadas como esse grande encanamento responsável pela digestão e absorção de comida, o intestino. O que se plantou inadvertidamente com a mudança no padrão de alimentação, associada a outros fatores comportamentais e ambientais, está resultando numa colheita alarmante: o aumento de casos de um grupo de enfermidades graves conhecidas como doenças inflamatórias intestinais. Os recentes achados das pesquisas e os números de internações no Brasil e lá fora deixam o fenômeno evidente: há cada vez mais adultos jovens recebendo o diagnóstico de um quadro que pode ser doloroso em diversos sentidos e abalar completamente a qualidade de vida quando fora de controle. Um problema que, além de tudo, pode lançar sementes para um câncer no futuro.
Existem dois principais tipos de doença inflamatória intestinal, a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa. Ambas são marcadas por uma espécie de incêndio em algumas extensões do aparelho digestivo. A depender da forma e de suas manifestações, o sujeito padece com dores abdominais, episódios de diarreia com sangue, mal-estar e até mesmo repercussões em outros cantos do corpo. O diagnóstico se dá geralmente entre os 20 e os 50 anos, impondo ajustes na rotina para lidar com as crises e acomodar situações como a necessidade de ir de cinco a quinze vezes por dia ao banheiro. Fadiga, indisposição, falta de apetite e perda de peso são outros sinais dessas enfermidades, que podem demorar a ser detectadas, cobrando um preço físico e mental de suas vítimas, ainda mais em uma faixa etária na qual se exigissem energia e produtividade.

O desafio ganha proporções maiores quando se leva em conta o aumento galopante na prevalência. No Brasil, em menos de uma década, ela passou da taxa de trinta acometidos por 100 000 habitantes, em 2012, para 100 por 100 000, em 2020. O número de internações por essas enfermidades também escalou. Segundo um levantamento da Sociedade Brasileira de Coloproctologia (SBCP) junto a dados do Ministério da Saúde, houve um crescimento de 61% nas hospitalizações nos últimos dez anos — mais de 170 000 atendimentos apenas no Sistema Único de Saúde (SUS).
Na realidade, o Brasil não é exceção nessa ascensão de distúrbios intestinais. “É uma questão de saúde global. Na América do Norte, Europa e Oceania, é previsto que elas atinjam 1% da população na próxima década”, diz o gastroenterologista Remo Panaccione, professor da Universidade de Calgary, no Canadá. “A incidência apresentou mudanças epidemiológicas notáveis em todo o mundo, pois são doenças modernas de tempos modernos, enraizadas na industrialização da sociedade”, afirma o especialista, à frente de estudos na área. De acordo com seus últimos achados, os países emergentes na América Latina e na Ásia já vivenciam um boom de casos dessas condições inflamatórias. Uma história que acompanha de perto outra explosão: a dos diagnósticos de tumores colorretais, cada vez mais precocemente.
Embora ainda não haja uma única causa comprovada para as panes intestinais, muitas delas desencadeadas por uma alteração no sistema imunológico, as suspeitas das pesquisas recaem bastante sobre o consumo excessivo de ultraprocessados, estresse e sedentarismo. O diagnóstico e o controle dessas doenças visam não só devolver o bem-estar ao paciente como também evitar outra ameaça lá na frente, um câncer causado pela inflamação crônica na região. “Sabemos que há uma incidência maior desse tumor entre pessoas com retocolite ulcerativa”, diz a gastroenterologista Rafaela Dassoler, da Faculdade de Medicina do ABC.
A boa notícia é que, embora não haja cura para as doenças inflamatórias intestinais, o arsenal terapêutico evoluiu barbaramente. Agora, além de medicamentos tradicionais como corticoides, despontam nas clínicas e farmácias anticorpos monoclonais e inibidores de proteínas específicas e relacionadas à desordem digestiva. Para os especialistas, vive-se um momento divisor de águas no tratamento. Um desses remédios, o guselcumabe, aprovado no Brasil para casos moderados e graves, levou 72% dos pacientes com retocolite à remissão dos sintomas em 92 semanas de uso. “Não tínhamos nada tão expressivo na última década”, diz o coloproctologista Alexander Rolim, membro da SBCP. Outra novidade é o upadacitinibe para doença de Crohn, um comprimido que propiciou o controle do quadro em até metade dos pacientes em um prazo de três meses.
Assim como outras condições que dependem da incorporação de novas tecnologias, o acesso ainda é um gargalo para os brasileiros com doenças inflamatórias intestinais. Os medicamentos de última geração acabam chegando antes para quem é atendido na rede privada, mas o Ministério da Saúde está trabalhando para prover novas drogas à rede pública, bem como ampliar a conscientização sobre o problema, inclusive nas escolas. Prova disso é a criação de uma política nacional dedicada a doença de Crohn e retocolite, recém-sancionada por lei. “Precisamos cada vez mais de medicamentos com melhor eficácia, porque muitos pacientes não respondem à primeira linha, e isso afeta a qualidade de vida”, diz Dassoler. Rever os hábitos alimentares é outro imperativo que precisa ser incutido nesse público. Ou melhor, nesse caso, a medida é bem-vinda a toda população. Pelo bem do intestino.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947