‘O déficit de atenção passou a ser usado para diagnosticar adultos sobrecarregados’
Em entrevista a Veja, Juliana Belo Diniz fala sobre seu novo livro 'O que os psiquiatras não te contam'

A percepção parece ser geral: os diagnósticos psiquiátricos estão em alta. Há quem diga que a causa está no maior acesso – e é verdade –, mas também há quem culpe o estilo de vida contemporâneo cada vez mais insalubre ou até um certo exagero por parte dos médicos. Essa é uma das discussões que a psiquiatra Juliana Belo Diniz traz em seu novo livro, O Que Os Psiquiatras Não Te Contam (Ed. Fósforo).
Doutora em psiquiatria pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em pesquisa clínica pela Universidade Harvard, ela atua no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Na contramão de seus pares, ela defende que as condições mentais não são doenças apenas no cérebro, mas condições complexas que, muitas vezes, dependem mais de intervenções ambientais e comportamentais do que medicamentosas.
Em entrevista a VEJA, ela fala sobre a origem desse movimento, o momento atual da psiquiatria brasileira e os problemas por trás do modelo de negócios contemporâneo da medicina.
Houve um aumento nos diagnósticos de transtornos psiquiátricos? A psiquiatria cria o vocabulário que pode ser usado para descrever o sofrimento psíquico, mas os nossos diagnósticos adquirem vida própria e podem ser usados de formas que não mais correspondem a como eles foram conceitualizados. Um exemplo mais antiquado é a compreensão em torno do que entendemos como sintomas de ansiedade. A timidez, por exemplo, não era considerada um sintoma, mas sim uma característica (como ser loiro ou moreno), até descobrirmos remédios capazes de aliviar a ansiedade fóbica e ajudar alguns tímidos a se sentirem mais seguros. Timidez virou fobia social e depois ansiedade social. O diagnóstico de autismo, por exemplo, foi apropriado por movimentos da sociedade civil que passaram a demandar uma revisão mais ampla do significado desse termo. Na esteira desse movimento, alguns psiquiatras e neurocientistas modificaram o discurso em torno desse diagnóstico, dando razão aos movimentos sociais e aumentando a frequência com que esses diagnósticos são feitos mesmo que a frequência de traços autistas não tenha efetivamente aumentado na população.
E o déficit de atenção? O diagnóstico de déficit de atenção, que antes era entendido como algo que melhorava com o amadurecimento, passou a ser usado para diagnosticar adultos claramente sobrecarregados que se queixam de não dar conta de quantidades exorbitantes de tarefas. Nesse caso, tanto psiquiatras, quanto a indústria farmacêutica e a sociedade civil abraçaram a causa sem pestanejar, acreditando ter as respostas para demandas desumanas de produtividade que caracterizam os regimes de trabalho atuais.
Como a psiquiatria deve lidar com as questões no mundo atual? É claro que a psiquiatria e a psicologia não têm como resolver nenhum desses problemas. Nem vamos impedir as pessoas de ficarem ansiosas com a falta de perspectiva de resolução para as diversas crises que os assolam. Todavia, a psiquiatria e a psicologia precisam participar das discussões em torno dos problemas sociais. Além disso, para não confundir reação inevitável com sintomas de doença mental, precisamos ser letrados em relação aos efeitos do racismo, conhecer as discussões sobre sexo e gênero, e acompanhar o que ocorre do ponto de vista político e social. Não podemos ser alienados encastelados dentro dos nossos consultórios e hospitais.

Quando as doenças psiquiátricas deixaram de ser uma condição do “espírito” para se tornar uma condição que afeta a fisiologia? A partir da segunda metade do século 20, quando encontramos remédios com efeitos capazes de controlar sintomas como delírios e alucinações e melhorar quadros depressivos e ansiosos, parecia certo que estaríamos próximos de desvendar a origem cerebral dos transtornos psiquiátricos. Afinal, se existiam substâncias químicas que modificavam o funcionamento cerebral e que tratavam sintomas de doenças mentais, como seria possível que a origem desses problemas não estivesse no cérebro?
Então as condições psiquiátricas são doenças do cérebro? A ideia de que os transtornos psiquiátricos são eminentemente doenças do cérebro é o que eu chamo de “mitologia cerebral”, baseada mais no desejo de encontrar no cérebro as causas das doenças mentais do que no resultado de estudos científicos.
Há marcadores biológicos para essas condições? O que encontramos são resultados inconsistentes ou de significado marginal. A maior parte das pessoas classificadas como portadoras de transtornos mentais comuns, como depressão ou ansiedade, não apresentam nenhuma alteração marcante na estrutura ou funcionamento cerebral, nem carregam variantes genéticas que explicam seus sintomas. Essas alterações são um pouco mais frequentes nos casos graves.
De onde vem o movimento de procurar causas não biológica? Esse movimento sempre andou em paralelo com as buscas por causas biológicas capazes de explicar o sofrimento psíquico. Inclusive, muitos pensadores, como o próprio Sigmund Freud, fundador da psicanálise, e Karl Jaspers, psiquiatra e filósofo da fenomenologia, defenderam que as causas das doenças mentais eram tanto biológicas quanto de outras naturezas.
Qual a importância de pensar em causas e tratamentos não biológicos? Retomar essa discussão sobre a causalidade das doenças mentais é uma forma de reabrir o espaço no discurso psiquiátrico para falar de sintomas depressivos, ansiosos ou de outra ordem, sem precisar, recorrer, necessariamente, a retórica médica e biológica. Isso não representa nenhuma ameaça para a prática psiquiátrica. Mesmo que os sintomas dos transtornos psiquiátricos não sejam o resultado de um distúrbio cerebral eles merecem respeito e cuidado. Portanto, defendo que não é obrigatório aderir a mitologia cerebral para falar de doenças mentais.
E nessa visão que mescla psicologia e psiquiatria, qual é o papel de cada uma? Do ponto de vista do atendimento clínico, a psiquiatria é uma especialidade médica que tem autorização para prescrever remédios e diversos outros tipos de tratamentos biológicos como as muitas formas de estimulação cerebral, e até neurocirurgia. Além das intervenções biológicas, muitos psiquiatras são também psicoterapeutas ou aplicam dentro da consulta médica conhecimentos que têm origem em alguma das diversas formas de psicoterapia. Já psicologia é uma disciplina bastante ampla que inclui desde áreas sem nenhuma sobreposição com a psiquiatria, como a psicologia organizacional ou escolar, até diversas formas de psicoterapia que também fazem parte da prática psiquiátrica.
E quando optar por cada um? Em geral, a maior parte dos quadros leves e moderados podem ser tratados só com orientação ou psicoterapia, enquanto casos mais graves e crônicos tendem a requerer alguma intervenção com remédios ou outro tratamento biológico.
Nessa versão menos medicalizada da psiquiatria, qual o papel das drogas? Remédios psiquiátricos são essenciais para aliviar certos sofrimentos psíquicos e, hoje, é inadmissível deixar alguém excluído do convívio social sem acesso aos recursos que podem, dentro de certas limitações, trazer algum alívio. Ao mesmo tempo, os remédios não fazem todo o trabalho sozinhos e tanto psiquiatras quanto pacientes precisam estar implicados no processo de melhora. Os remédios estão incluídos dentro de um planejamento terapêutico muito mais amplo.
A senhora comenta em uma entrevista que a psiquiatria nunca foi muito calcada em ensaios clínicos. Pode comentar um pouco mais sobre isso? Em toda a medicina, a maior parte das decisões médicas é apenas parcialmente baseada em evidências científicas vindas dos chamados ensaios clínicos. Isso acontece porque o mundo real é muito diferente do ambiente controlado dos estudos científicos. A maior parte dos pacientes não é parecida com aqueles que foram incluídos nos estudos, as doenças aparecem de forma muito diferente e o contexto de tratamento é muito menos previsível. Além disso, ensaios clínicos são caros, demorados e trabalhosos, e existem verdadeiros desertos de evidências em campos que despertam menos interesse comercial ou têm menor impacto na saúde pública.
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Todo esse modelo mais humanizado, que busca uma relação maior de confiança e empatia entre o médico e o paciente vai na contramão de um modelo de negócios com cada vez menos espaço para práticas mais humanizadas e fraternas. Como mudar isso estruturalmente? A precarização das condições de trabalho e a desvalorização escandalosa dos profissionais de saúde, principalmente, daqueles que atuam no atendimento direto ao paciente é, sem dúvida, a maior ameaça a qualidade do atendimento nos diversos sistemas de saúde. Essa é uma economia burra, que onera os profissionais para reduzir custos, mas acaba aumentando o risco de erros e complicações. Infelizmente, esse não é um cenário exclusivo do trabalho no setor de saúde. A desumanização desse processo é, a meu ver, assustadora e só uma revisão das nossas relações sociais será capaz de conter os efeitos devastadores desses modelos comerciais desumanos.