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No pós-isolamento, um novo medo: como reconstruir conexões sociais?

O avanço da vacina permite a retomada gradual das atividades. Mas muita gente experimenta um misto de sentimentos que vão do alívio à angústia

Por Cilene Pereira
Atualizado em 16 jul 2021, 17h47 - Publicado em 16 jul 2021, 06h00

Melhor sozinha
Nem sempre foi assim para a estudante Julia Chaffin, 22 anos, moradora do Rio de Janeiro. Antes da pandemia, sair de casa para ver os amigos e viajar era um prazer para ela. Agora, Julia muitas vezes prefere seguir com o isolamento por vontade própria, distante de velhos e novos amigos. “Interagir com conhecidos me deixa um pouco ansiosa”, diz.

No estupendo livro A Grande Gripe, o historiador americano John Barry apresenta o retrato mais detalhado feito até hoje do impacto da chamada gripe espanhola, que de espanhola não tinha nada, sobre as relações sociais da época. Entre 1918 e 1920, uma variante aterradora do influenza, o vírus causador da gripe, saiu dos Estados Unidos, segundo a hipótese mais provável, espalhou-se pelo mundo e causou entre 50 milhões e 100 milhões de mortes. No início, uma onda de solidariedade tomou as cidades mais atingidas. Vizinhos ajudaram vizinhos, médicos e enfermeiros voluntariaram-se para atender doentes e doações surgiam aos montes. Quando acabou, a sociedade havia mudado. Muita gente continuava em casa com medo do vírus, amigos e famílias viam-se com menor frequência e um enorme desconforto pairava nos reencontros. Os vínculos sociais tinham sido rompidos. Anos foram necessários até que se encontrar com o outro voltasse a ser um ato banal.

Respeitando as devidas proporções, pode-se dizer que a devastação causada pela pandemia no século passado é a comparação mais próxima do que o mundo vive hoje. O interessante é que, mesmo quase 101 anos depois e uma revolução tecnológica que abriu um universo digital onde todos têm milhares de amigos e conexões, o ser humano ameaçado pela Covid-19 repete o comportamento manifestado por aquele que ficou isolado por causa da gripe. Estamos sofrendo com a ansiedade da volta.

arte Ansiedade

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A abertura gradual dos escritórios, bares, restaurantes, com a consequente retomada dos encontros presenciais, começou. O movimento é resultado do avanço da imunização. Na terça-feira 13, o Brasil viveu o 17º dia consecutivo de declínio no total de mortes, enquanto o índice de vacinados ao menos com uma dose chegou a 40% da população. É de comemorar muito, obviamente, mas a verdade é que, junto com a alegria, brota um misto de sentimentos que vão do alívio ao medo, do desejo de retornar ao cotidiano pré-pandemia à angústia de não saber se e como o distanciamento compulsório afetou os laços sociais.

Nos consultórios médicos, na conversa — on-line — com o amigo ou o parceiro o assunto está presente. Depois de tanto tempo longe daquele colega desagradável do trabalho, como voltar ao convívio diário com ele? O reencontro presencial com o amigo visto apenas virtualmente será igual ao dos velhos tempos? Ou surgirá um estranhamento? E o que fazer com o medo de ser infectado pelo novo coronavírus? Como é tradição, não há dados brasileiros sobre o tema. Mas um levantamento divulgado pela American Psychological Association dá ideia de quantos estão sofrendo com a perspectiva da volta: cerca de metade dos americanos admite que retomar as interações sociais presencialmente não será fácil.

Em primeiro lugar, é crucial ficar claro que esse desassossego dentro da mente de cada um é absolutamente normal. A ansiedade é um dos mecanismos mais primitivos entre todos os criados pelo homem ao longo de sua evolução. Ela consiste na adaptação do estado mental e físico para garantir a sobrevivência em ambientes hostis ou diferentes. O corpo fica em alerta e preparado para enfrentar o que vier. Não é por outra razão que quando se está ansioso o coração bate mais forte para fornecer mais oxigênio ao cérebro e a outros órgãos envolvidos nas respostas físicas que podem ser necessárias.

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SOLIDÃO - Pandemia da gripe espanhola: depois do isolamento, dificuldade de ressocialização -
SOLIDÃO - Pandemia da gripe espanhola: depois do isolamento, dificuldade de ressocialização – (PhotoQuest/Getty Images)

Na pandemia, a ansiedade é a condição mental mais presente, junto com a depressão. Tanto no início quanto agora, mais próximo do fim, a ansiedade resultou do temor do desconhecido que vinha junto com o vírus. Primeiro, não se sabia de que forma os seres humanos, gregários por essência, viveriam em isolamento. Agora, ninguém é capaz de dizer como eles retomarão as conexões sociais tão esgarçadas pela distância ou transformadas pelo uso de recursos digitais como o único meio de manter vínculos.

Durante um ano e meio, a casa foi a zona de conforto e a tela do computador ou do celular, escudo de proteção. Sair dessa bolha agora, após meses a fio, é como deixar seu castelo pela primeira vez e se aventurar em terras nunca visitadas. “E qualquer mudança nos ambientes que consideramos seguros gera stress”, explica o psiquiatra Arthur Danila, coordenador do Programa de Mudança de Hábito e Estilo de Vida do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Circunstâncias antes vistas como normais podem passar a ser percebidas como ameaçadoras após esse longo período de reclusão social”, diz.

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Um dos aspectos mais fascinantes do cérebro é sua capacidade de se remodelar a partir das necessidades exigidas. A neuroplasticidade cerebral permite, por exemplo, que novos circuitos neuronais sejam acionados para assumir a função de outros, lesados. O cérebro aprende e se adapta. Está aí uma habilidade que contará a favor durante o processo de regresso à vida normal, ou quase normal. Construir conexões sociais é vital para a sobrevivência de todos os animais, e o cérebro de cada espécie se moldou de forma a obter a chamada homeostase social, o equilíbrio ideal das interações com outros indivíduos. Mais do que isso, um circuito especializado na detecção de eventuais gargalos é acionado para fazer os ajustes necessários. “É uma espécie de termostato social”, escreveu em artigo o neurocientista Kareem Clark, pesquisador da Virginia Tech, da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.

PRA QUE RELÓGIO? - O sono mudou no último ano: em geral, as pessoas estão dormindo mais -
PRA QUE RELÓGIO? – O sono mudou no último ano: em geral, as pessoas estão dormindo mais – (Flashpop/Getty Images)

Pesquisas em animais já demonstraram que, quando o alerta é acionado indicando ausência de laços sociais, a correção de rota é feita tão bem que mesmo funcionalidades cognitivas que haviam se perdido em razão da solidão podem voltar após curto período. Em seres humanos, também. Melhor, em seres humanos que estão passando pelo isolamento imposto pela pandemia. Um estudo realizado por pesquisadores escoceses e publicado em março na revista científica Applied Cognitive Psychology demonstrou que a memória dos participantes, enfraquecida nos meses de quarentena mais rígida, melhorou após o relaxamento de algumas medidas. “Mas é preciso tempo para essa reaprendizagem”, afirma a psicóloga Maria Cristina Rosenthal, professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo. “Neste caso da pandemia, é como se a proximidade com o outro fosse algo perigoso. Precisamos aprender isso”, explica. A partir de agora, portanto, é necessário reaprender o contrário, fazendo o caminho inverso.

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Há outro aprendizado a ser feito. Levantamentos realizados em várias partes do mundo detectaram que, em geral, as pessoas estão dormindo mais. Um deles analisou a rotina de sono de estudantes quarentenados, portanto com aulas on-line. Os pesquisadores, da Universidade de Colorado em Boulder, nos Estados Unidos, constataram que os jovens dormiam em média trinta minutos mais durante a semana e 24 mais nos fins de semana comparado ao total de horas em que dormiam antes da pandemia. Não é uma surpresa, uma vez que estudar ou trabalhar em casa é mais cômodo e dispensa deslocamento. Certamente não são apenas os alunos americanos, mas uma boa parte da humanidade está usufruindo os minutos a mais de descanso.

BERNARDO SANTOS, 24 anos -
BERNARDO SANTOS, 24 anos – (//Arquivo pessoal)

Estranho regresso
Bernardo Santos, 24 anos, achou esquisito quando se reencontrou com os amigos depois do relaxamento das medidas de contenção da pandemia. “Foi um pouco estranho. As pessoas mudaram um pouco nesse período”, conta. O estranhamento começou na hora da chegada. “Não sabia se dava a mão, se acenava”, lembra. “Apesar do contato frequente pelas videochamadas, ver as pessoas presencialmente é outra coisa.”

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O fato é que, a partir disso, voltou à tona uma antiga discussão entre os especialistas sobre a necessidade de adequar o relógio biológico aos horários estabelecidos. O célebre das 9 às 18 horas é praticamente universal, mas a necessidade de sono, ao contrário, é bastante individual. Os momentos adicionais aproveitados pelos estudantes americanos, por exemplo, representam o tempo que cada um deles dormiria normalmente não fossem os compromissos. E a ciência já mostrou que um bom sono, considerando tempo e qualidade, é fundamental para a saúde. O repouso permite a consolidação das informações obtidas durante o dia e está envolvido em processos metabólicos importantes. Por isso, boa parte dos especialistas advoga por horários mais flexíveis, permitindo, na medida do possível, que os indivíduos desfrutem um bom sono. Tempos tão extraordinários deixam marcas indeléveis. Esperemos que entre as lições da pandemia esteja a importância de sempre buscar o equilíbrio. No sono e com quem está ao redor.

Colaborou Matheus Deccache

Publicado em VEJA de 21 de julho de 2021, edição nº 2747

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