Na nova fase da pandemia, a hora é de aprender a conviver com a Covid-19
A mudança no enfrentamento da doença é radical. Em vez do isolamento total, o momento é de manter a calma e os cuidados — com vacinas — e tocar a vida
Exatamente um ano separa as fotos acima. As duas são registros das noites de réveillon na Times Square, tradicional ponto nova-iorquino da festa da virada. A primeira, à esquerda, registra a comemoração da passagem de 2021 para 2022, agora mesmo. A segunda, de 2020 para 2021. Nos dois momentos, Nova York enfrentava mais uma das escaladas de casos de Covid-19 que marcaram a pandemia desde seu início, em março de 2020. Nenhuma, no entanto, é tão impressionante quanto a que varre o mundo neste momento, alimentada pela ômicron. Enquanto turistas se aglomeravam na praça na noite de 31 de dezembro de 2021, a cidade americana contabilizava 472 000 novas notificações nas 24 horas anteriores. Um dia antes, foram 590 000. E assim tem sido em todo lugar. Na Europa, estima-se que, em dois meses, metade da população do continente terá sido contaminada. No Brasil, na segunda-feira 10, houve mais de 36 000 novos infectados, representando um aumento de quase 800% em relação às duas semanas anteriores. No entanto, mesmo com a assombrosa expansão de testes positivos se desenrolando em ritmo inédito, o mundo não parou. Nova York festejou a entrada de 2022 em uma Times Square lotada, bem diferente da imensidão vazia do ano passado. Empresas, comércio e escolas permanecem abertos e a palavra lockdown, tão pronunciada nos primeiros meses da pandemia, sumiu das conversas. Muita gente se pergunta, com razão, o que mudou em relação aos últimos dois anos, quando as oscilações do vírus pautaram nossas rotinas. A resposta é simples: tudo. E a partir de agora não mais nos fecharemos em casa a cada nova variante. Chegou a hora de aprender a viver com o vírus, mantendo a calma e os cuidados — vacinas sempre, por favor —, e tocar a vida.
Bem-vindo ao novo normal com o rótulo de 2022. Essa mudança radical no enfrentamento da Covid-19 só é possível porque a pandemia está em estágio bastante distinto dos anteriores. Em 2020, o SARS-CoV-2 surgiu como um vírus pandêmico. Ou seja, desconhecido pelo organismo humano — sem defesa prévia contra o invasor, portanto —, capaz de infectar e provocar doença grave em pessoas de qualquer parte do mundo. Durante dois anos, seguiu evoluindo por meio de mutações que, em alguns casos, favoreceram sua transmissibilidade e letalidade, caso das cepas alfa, beta, gama e delta. Porém a história das pandemias mostra que o trajeto evolucionário de um agente infeccioso é sempre esse até que seja atingido o ponto de equilíbrio no qual o vírus inicie a migração da fase de destruição do hospedeiro para a de coabitação com ele. A pandemia está precisamente neste período, o da transição da forma pandêmica do coronavírus para sua versão endêmica, quando ele se tornará um inimigo mais parecido com o Influenza, vírus que provoca a gripe, e não mais representará grande perigo à saúde pública. Isso significa ainda que o vírus deixará de causar interferências drásticas na rotina das sociedades, obrigando a suspensão de atividades ou o fechamento de cidades e países.
E quem deu início a este novo período foi justamente a ômicron. A variante é exemplo acabado das cepas típicas das fases de transição: altamente transmissível, mas menos agressiva, para não matar seu hospedeiro. Ela dificilmente chega aos pulmões, onde começam as complicações mais severas da Covid-19. Isso explica por que as hospitalizações não crescem na mesma proporção dos casos. “A cepa é preocupante, mas não é um desastre para a saúde”, escreveram na semana passada os médicos israelenses Zvika Granot e Amnon Lahad, da Universidade Hebraica de Jerusalém. “A ômicron pode ser o sinal do fim da pandemia.”
A clara percepção de que a Covid-19 ruma em direção à endemia autoriza a saída de cena da política Covid Zero (à exceção da China, conforme texto na pág. 61) e sua substituição por medidas mais flexíveis. “A recomendação não é mais ‘fique em casa’, mas ‘evite aglomerações’”, explica o epidemiologista Pedro Hallal, professor associado da Universidade Federal de Pelotas e professor visitante da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. “Vamos seguir nossa vida normal, mas tomando os cuidados necessários, como usar a máscara. Estamos caminhando para o fim da pandemia, mas não é o fim do coronavírus.” A tônica é consenso entre autoridades de saúde e pesquisadores, com raras exceções. Na semana passada, estudiosos americanos que assessoraram o presidente Joe Biden na campanha eleitoral divulgaram no The Journal of the American Medical Association artigos com propostas para o novo momento. Entre as medidas, estão o estabelecimento de novos critérios para a adoção de medidas restritivas, o fortalecimento dos sistemas de vigilância epidemiológica, a ampliação de testagem e o aumento da cobertura vacinal. Na África do Sul, cientistas das principais universidades escreveram um manifesto em apoio à decisão do governo do país de deixar de pautar as respostas pelo número de infecções e passar a considerar o total de casos graves na tomada de decisões.
Reflete-se também qual o tempo adequado de isolamento nas circunstâncias atuais. No fim do ano passado, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos mudou sua diretriz e diminuiu o período de afastamento de pacientes assintomáticos de dez para cinco dias, mantendo o uso de máscara por mais cinco dias. No Brasil, a quarentena caiu para sete dias, mas pode chegar a cinco se a pessoa não tiver sintomas da doença e não estiver tomando antitérmicos por, ao menos, 24 horas. A Espanha, um dos países que mais sofreram durante a primeira onda, quer debater com outras nações europeias a possibilidade de classificar a Covid-19 como doença endêmica já nos próximos meses. “Isso é possível porque a ciência nos deu os recursos para nos protegermos”, disse o primeiro-ministro Pedro Sánchez. Louve-se, com toda a estridência necessária, a relevância das vacinas, uma das grandes criações da humanidade. Elas são comprovadamente eficientes na redução de casos graves e de mortes pela doença e, agora, responsáveis pela maior proteção contra os efeitos da ômicron. A título de exemplo: em 27 de dezembro do ano passado, em Nova York, já com a prevalência da ômicron, o índice de indivíduos hospitalizados que tinham sido duplamente vacinados era de 5 por 100 000 habitantes. Entre os não imunizados, rebanho que seguiu conselhos dos negacionistas, a taxa de internações chegara a 59 por 100 000 indivíduos. “Quem não se protegeu sofrerá mais”, diz o infectologista Anthony Fauci, conselheiro do governo americano contra a Covid-19.
O Brasil, que vive agora a explosão da ômicron e sofre com as estultices do presidente Jair Bolsonaro, tem a vantagem de ostentar bons índices de cobertura vacinal, à revelia da vontade do homem que senta na cadeira do Palácio do Planalto — até a quinta-feira 13, pelo menos 68% da população estava totalmente imunizada, com duas doses ou dose única, a depender do imunizante. Falta proteger os 20 milhões de crianças de 5 a 11 anos, que felizmente começarão a receber na semana que vem as primeiras doses da vacina pediátrica da Pfizer, e reduzir o número dos que não tomaram a segunda dose. Além disso, o país precisa avançar na testagem, ponto decisivo para o adequado monitoramento.
E, se uma das prioridades, daqui para a frente, é priorizar os cuidados aos mais vulneráveis, como é feito no manejo da gripe, o mundo tem uma lição de casa obrigatória e urgente. É preciso ampliar a proteção vacinal na África, onde apenas 10% da população está completamente imunizada. E assegurar ao continente estoques dos novos medicamentos contra o vírus que se mostraram bastante eficazes.
Apesar de trazer um certo alívio ao prometer um 2022 mais parecido com o que vivíamos antes do coronavírus, o modo “novo normal” impõe desafios individuais bem sensíveis. O mais difícil é reconstruir a relação com o trabalho, o descanso, o lazer e o convívio social enquanto se aprende a viver com a presença — ou onipresença, por ainda mais alguns meses — do vírus. “É preciso ter flexibilidade comportamental para acompanhar as oscilações que farão parte desta fase” explica o psicólogo Armando Ribeiro, especialista em gestão do estresse pela Universidade Harvard. Se o pânico chegar perto, lembre-se de que a inclinação biológica do vírus é se tornar mais inofensivo e que a ciência nos muniu do necessário para conviver com ele sem mais tanto sofrimento. O momento é de calma e otimismo — ainda que o desrespeito de parte do Ministério da Saúde com a pandemia, no descuido com os dados, em apagão estatístico inaceitável, seja aflitivo. A pandemia passará, como passaram outras. Seu legado será o respeito à memória dos mais de 620 000 brasileiros que morreram e os avanços científicos, liderados pela vacina, que já não podem ser renegados. Quem sabe ela termine tendo como moldura o sorriso das crianças, que, a partir da próxima semana, aparecerão sorrindo, orgulhosas, nas redes sociais, com o braços estendidos para as agulhas.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772