Mesmo proibido, o cigarro eletrônico ganha adeptos e divide opiniões
O debate sobre riscos e a regularização é complexo e envolve pontos de vista diametralmente opostos
Na saída do trabalho, na porta de colégios e faculdades, dentro e fora das baladas. Não é preciso fazer esforço para perceber que a fumaça que se espalha pelo ar emana, cada vez mais, de dispositivos eletrônicos, categoria popularizada pelos vapes. Ainda que a venda seja vetada no Brasil — em decisão ratificada em julho de 2022 —, o fato é que os brasileiros têm acesso fácil a produtos, de origem e qualidade duvidosas. Nesse cenário enevoado, há um embate: enquanto novas pesquisas sugerem que o cigarro eletrônico pode fazer tão mal quanto o convencional, especialistas afirmam que, com a regularização desse mercado, quem fuma poderia contar com produtos menos prejudiciais à saúde e até com o potencial de ajudar a abandonar o tabagismo.
O debate, adianta-se, é complexo e envolve pontos de vista diametralmente opostos. Oito em cada dez nações pertencentes à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cujas práticas inspiram políticas públicas pelo mundo, já regulamentaram os cigarros eletrônicos. E ao redor de oitenta países os reconhecem como instrumento para controle do tabaco e redução de danos a dependentes de nicotina. No ano passado, o King’s College London publicou uma revisão em cima de mais de 400 pesquisas e concluiu que esses dispositivos seriam vinte vezes menos nocivos que o cigarro comum. No Reino Unido, eles são vendidos legalmente e fornecidos pelo governo, junto a suporte terapêutico, a pessoas que querem parar de fumar — a meta do país é diminuir para 5% o índice de fumantes na população. No entanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não endossa a estratégia. Embora reavalie suas recomendações periodicamente, a entidade alega que não há evidências científicas suficientes sobre a utilização de vapes como auxílio contra o tabagismo — o que se deve à diversidade dos produtos no mercado formal e informal e à baixa qualidade de boa parte dos estudos conduzidos até agora.
O assunto esquenta no Brasil porque faltam não só dados confiáveis sobre o número de usuários como inexiste um controle dos dispositivos. Algo que a própria indústria do cigarro critica em função da proibição determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Na contramão, quase cinquenta entidades médicas defenderam a manutenção do veto no ano passado devido aos riscos envolvidos. Entre os motivos, residem o desconhecimento do que realmente as pessoas estão inalando nos vapes — os níveis de nicotina podem variar consideravelmente e há casos de misturas com outras drogas — e o temor de que uma nova geração fique refém do tabaco. “Há décadas se luta para reduzir o número de fumantes no país e, com isso, o número de doentes. Fomos bem-sucedidos, mas, com o cigarro eletrônico, estamos vendo o problema crescer de novo”, diz o pneumologista Elie Fiss, professor da Faculdade de Medicina do ABC. Estima-se que 2,2 milhões de brasileiros sejam usuários dos aparelhos — e uma em cada cinco pessoas de 18 a 24 anos já os experimentou. A preocupação dos profissionais de saúde mira o curto e o longo prazo. Fora a dependência, lesões pulmonares associadas aos e-cigarettes foram descritas e cresceram de 11 300 episódios em 2020 para 31 600 em 2022 só nos Estados Unidos, onde a venda é liberada. “Quando a gente analisa a relação do câncer de pulmão com o cigarro, o pico da doença ocorre em mais de vinte anos de uso”, diz o oncologista Andrey Soares, do Hospital Israelita Albert Einstein. “No caso do eletrônico, não sabemos direito o que as pessoas estão consumindo nem os riscos futuros para os pulmões e outros órgãos.”
Com os vapes na boca do povo, contudo, voltou-se a discutir se a regulamentação não poderia ser, dos males, o menor. Talvez sim, já que a proibição de 2009 foi calcada na precaução, porque não havia dados suficientes à época. E agora? “A decisão de quase quinze anos atrás já não funciona”, diz a farmacêutica Alessandra Bastos, ex-diretora da Anvisa e consultora científica da BAT Brasil, subsidiária da British American Tobacco. “Basta ver quantas pessoas já entraram em contato com esses produtos, sem que tenhamos ideia da procedência deles, para ver como a regra é ineficiente. Criar uma norma sanitária não é liberar. Pelo contrário, é definir como o produto deve ser fabricado e vendido e de que forma isso vai ser comunicado.”
Ciente desse cenário, um grupo de pesquisadores e entidades, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), discorda da regulamentação como a melhor saída. “O que acontece quando o mercado regulariza um produto? Só aumenta a base de usuários, pois se cria um falso senso de segurança”, afirma a cardiologista Jaqueline Scholz, do Instituto do Coração (InCor) da USP, que se diz alarmada com a penetração dos e-cigarettes entre os mais novos. Ela apresentará, no congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), um estudo inédito com indivíduos de 14 a 49 anos que procuraram o InCor para lidar com a dependência por cigarro eletrônico. Uma das conclusões é que o nível de nicotina no organismo deles é similar ao da versão convencional. “Existem adolescentes que usam vape com o mesmo valor de nicotina na urina de uma pessoa que fuma vinte cigarros por dia”, afirma Jaqueline. Nessa linha, uma pesquisa realizada pela Universidade do Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, constatou que pessoas de até 15 anos que começam a utilizar esses dispositivos encaram maior risco de se tornarem dependentes na vida adulta.
Um dos atrativos dos vapes para a juventude são as essências e outras substâncias adicionadas ao aparelho. “No mercado ilegal brasileiro, há sabores apelativos e designs infantilizados. Com o controle, isso não existe”, diz Lauro Anhezini Junior, chefe de Assuntos Científicos e Regulatórios da BAT Brasil. Por aqui, e-cigarettes apelativos e mais baratos são comercializados por meios clandestinos, diferentemente de praças estrangeiras onde os vaporizadores dividem espaço com dispositivos de tabaco aquecido em estabelecimentos permitidos pelas autoridades.“Há uma preocupação legítima quanto ao aumento do consumo principalmente entre adolescentes. Porém hoje o cigarro eletrônico é proibido e temos uma catástrofe”, diz Junior.
O problema é real, onde há fumaça há fogo, e o pior caminho é fingir que ele não existe. A primeira edição do Índice Global de Políticas Antitabagistas Eficazes, idealizado pela rede latino-americana Somos Inovação, instala o Brasil entre os piores nesse ranking — os mais bem colocados são Suíça, Reino Unido e Nova Zelândia. Mas a pesquisa utiliza como principal critério positivo as regulamentações para fins de redução de danos. Por essa razão, a Austrália, que se mobilizou para banir os produtos recentemente, ficou na última posição.
Entre prós e contras, manifestantes saíram às ruas no México pedindo liberdade para “vapear”. Em outros países, como a Suíça, deu-se o endurecimento de medidas contra a propaganda de tabaco, mesmo eletrônico. Guerras à parte, parece consenso que os mais novos precisam ser defendidos e sensibilizados, a despeito de a proibição oficial continuar ou ser revogada. “O consumo entre adolescentes está aumentando. Não adianta dizer que o problema só existia quando se fumava cigarro com combustão”, afirma Gleison Guimarães, da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT). “Não é bem assim. Hoje tem gente usando dispositivos com alta carga de nicotina, substância que, quanto maior a dose, maior o risco de dependência.” Desde que um farmacêutico chinês inventou um aparelho para mitigar o vício pelo cigarro há dez anos, muitas águas e fumaças rolaram. E os dilemas continuam no ar.
Publicado em VEJA de 14 de Junho de 2023, edição nº 2845