Médico brasileiro é o principal nome das pesquisas com o remdesivir
André Kalil, gaúcho radicado nos EUA há trinta anos, está na linha de frente dos estudos sobre a droga da esperança
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No futuro, quando os historiadores forem contar a tragédia da pandemia de Covid-19, caberá um capítulo decisivo ao navio Diamond Princess e seus mais de 3 700 passageiros que sonhavam com férias no Oriente. Atracado no porto de Yokohama, no Japão, o transatlântico virou notícia nos primeiros dias de fevereiro com a informação de que um dos turistas a bordo fora diagnosticado com Covid-19. Ao longo de duas semanas, com as escadas recolhidas, a embarcação transformou-se em território de mais episódios de infecção pelo vírus Sars-CoV-2. Em meio à quarentena forçada, os casos se multiplicaram. Foram 712 resultados positivos, com catorze mortes. Quando as portas finalmente começaram a ser abertas, paulatinamente, um grupo de americanos foi transferido em voo fretado para as instalações hospitalares associadas à Universidade de Nebraska Medical Center, em Omaha, na região central dos Estados Unidos. Para o local haviam sido levados da África, cinco anos antes, pacientes com ebola.
Seis dos contaminados com o novo coronavírus, em estado de saúde mais grave, foram internados na chamada unidade de “biocontenção”, espaço isolado no qual o ar é filtrado várias vezes por dia e os profissionais de branco vestem macacões com respiradores internos. Quem os recebeu foi o gaúcho de Bagé André Kalil, 54 anos, infectologista, intensivista e pesquisador do hospital há quase vinte anos. Kalil e sua equipe já tentavam então a aprovação dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), órgão ligado ao governo federal dos Estados Unidos, sinal positivo para o início do estudo do antiviral remdesivir, do laboratório californiano Gilead, contra a Covid-19. A chegada dos infectados ajudou a acelerar o aval das autoridades. Poucos dias depois daquele encontro inaugural com o médico de 1,82 metro e apenas 76 quilos, cuja magreza foi aperfeiçoada por anos de treinamento em maratonas, três passageiros do Diamond se tornaram os primeiros a ser tratados com a medicação. Eles se recuperaram, atalho para uma série de estudos com bons e animadores resultados.
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Na quarta-feira 29, Anthony Fauci, de 79 anos, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos desde 1984, figura histórica dos anos iniciais de combate à aids, postou-se ao lado do presidente Donald Trump, na Casa Branca, para detalhar um pacote de ótimas respostas clínicas de um dos trabalhos com o remdesivir conduzido por Kalil. Revelou que, no acompanhamento de quase 500 pacientes hospitalizados, os que tomaram o antiviral recuperaram o bom estado de saúde em onze dias — ante quinze dias entre os que receberam o placebo. No grupo do remdesivir, 8% dos enfermos morreram — na outra turma, 11,6%. A estatística é ainda preliminar, muitos outros levantamentos precisam ser feitos, e é sempre bom lembrar que pesquisas acompanhadas na China não têm entregado boas conclusões com a droga da esperança. E, no entanto, o levantamento aludido por Fauci, voz sempre ouvida, crítico contumaz do exagero com a cloroquina, personagem inescapável, provocou um duplo movimento.
Fez com que as ações da Gilead subissem mais de 5% nas bolsas de valores e, sobretudo, serviu de atalho para que a FDA, a rigorosa agência de controle de medicamentos dos Estados Unidos, pusesse o remdesivir na frente de todos os outros remédios na luta contra a Covid-19. “Enquanto falamos, a FDA trabalha com a Gilead para encontrar mecanismos de distribuição do remdesivir no mercado”, disse Fauci diante das câmeras. “A FDA sabe da importância desse passo e deve se mover muito rapidamente.” Havia a expectativa, até a quinta-feira 30, de que a FDA desse “autorização de emergência”, o que não é o mesmo que aprovação formal. Para Fauci, sempre bastante cauteloso com dados de laboratório, o remdesivir não representa um “nocaute”, mas os estudos permitem concluir que “pode bloquear uma enzima do vírus”. Haverá idas e vindas em torno do composto, naturalmente, porque assim funciona a história de vitórias e derrotas da indústria farmacêutica — e o próprio Fauci fez questão de associar os passos atuais, ainda trôpegos, embora firmes, à gênese do AZT, o medicamento que baixou a curva de vítimas de aids, em meados dos anos 1980, mas que no início foi visto com desconfiança.
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A quase 2 000 quilômetros de distância, no Nebraska, Kalil acompanha a movimentação com um misto de curiosidade e discrição. Ele sabe estar na dianteira da locomotiva, mas a modéstia e a dedicação inquebrantável ao funcionamento dos vírus o fazem manter a calma. “A pressa não pode comprometer a ciência séria”, resume, com sotaque típico de quem nasceu na fronteira do Brasil com o Uruguai, atenuado pelo perfeito inglês. Kalil chegou aos EUA aos 24 anos, recém-formado, para fazer um curso de medicina geral em Miami, onde conheceu a mulher, a americana Patricia, com quem é casado até hoje e tem três filhos, duas meninas e um menino. O salto profissional foi rápido. Especializou-se em prática intensivista nos NIH e infectologia na Harvard. Ao terminar os estudos, foi atrás de emprego na Universidade de Nebraska, onde entrou como professor assistente e, atualmente, é referência mundial em pesquisa clínica. “Minha paixão é estar na beira no leito do paciente”, afirma. “E este lugar é um dos poucos centros no mundo em que o atendimento médico e a pesquisa científica caminham de mãos dadas.”
Falante e entusiasmado, Kalil nunca foi o melhor aluno da classe, trajetória comum a grandes nomes de sua área de atuação. Na Universidade Federal de Pelotas, a 200 quilômetros de Bagé, dormia nas aulas teóricas e enfadonhas de medicina, em especial as de histologia e anatomia. “Era só a luz apagar e o professor começar a projetar slides que ele pegava no sono”, diz o psiquiatra Hemerson Mendes, colega de faculdade. “Não era um dormir simples. Ele se acomodava sobre a carteira e chegava a fazer carinho na ponta do nariz.” A postura juvenil, esta que o fazia adormecer, acompanha-o desde sempre, e ainda agora. Na sala de 10 metros por 6 metros onde trabalha, a profusão de papéis e pastas é quebrada por um pequeno quadro do Homem-Aranha pendurado na parede. “Cresci lendo gibis, só que, veja bem, o mais importante neste lugar não é ele. Você não viu na foto a estátua do laçador sobre a estante?”, pergunta. O laçador, a representação do gaúcho clássico, de bombacha, botas e, claro, com laço na mão, é conhecido (e venerado) pelos que nascem no Rio Grande do Sul.
Kalil mantém contato estreitíssimo com Bagé. Nos primeiros casos de Covid-19 na cidade (foram nove em apenas três semanas, depois saltando para 29), ele ajudou os colegas a lidar com os doentes. “Era tudo muito novo para nós, eu mandava mensagens diariamente, às vezes tarde da noite, procurando informações, e ele me atendia prontamente, ajudando a interpretar os casos”, conta a pneumologista Flavia Marzola da Silveira, amiga de infância. “Chegamos a pedir o antiviral remdesivir, e André respondia apenas para termos calma.” Calma é o que ele tenta mostrar aos três filhos, de 21, 22 e 24 anos (um estuda engenharia eletrônica; outro, cinema; outro, medicina), que falam português fluentemente. Foram criados com os livros do Sítio do Picapau Amarelo e músicas de Milton Nascimento. Até pouco tempo atrás, iam todos os anos passar o Natal em Bagé com os avós, um casal de imigrantes libaneses. Felipe, já falecido, e Gloria construíram a York, loja de roupas e objetos de decoração de alto padrão hoje dirigida pelo único dos quatro irmãos de Kalil que não cursou medicina.
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Nos Estados Unidos, Kalil leva uma vida de trabalho duro, espartana. Acorda às 5 e meia da manhã e corre 10 quilômetros diariamente, perto de casa. Até então, só a temperatura abaixo de zero o impedia de correr — a pandemia o pôs mais tempo debruçado nas pilhas intermináveis de estudos. Com a quarentena, ele começou a usar uma esteira guardada no porão. Depois da corrida, toma um café expresso duplo e vai para o hospital. Só come na hora do almoço, um sanduíche preparado em casa. O preferido é a bomba energética feita de pão integral recheado de pasta de amendoim e mel. O lanche é feito com frutas, pera ou laranja. Raramente volta do trabalho antes das 21 horas, quando se dedica por mais quatro horas aos estudos e artigos. No escritório doméstico, ninguém toca nos montes de papéis acumulados sobre a mesa, na estante e espalhados pelo chão, como réplica da sala no hospital. “É uma bagunça organizada”, diz. Pelo jeito, ele sabe onde encontrar o que busca, e da bagunça pode brotar um bálsamo para a humanidade.
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685