MAHA: Os erros e acertos do relatório de saúde do governo Trump
De ultraprocessados a vacinas, documento destaca questões importantes, mas influência ideológica prejudica avaliação e decisões baseadas em estudos

Na última semana, a Casa Branca divulgou um relatório que deve embasar as principais políticas de saúde do governo Trump. Com grande influência do movimento MAHA (sigla em inglês para Torne a América Saudável Novamente), o documento destaca problemas importantes, mas a avaliação técnica é fortemente enviesada pela visão ideológica.
O movimento, abraçado pela administração atual, visa resolver um problema histórico: apesar dos avanços do país, a saúde nos Estados Unidos é relativamente pior que a de outros países desenvolvidos, o que resulta em uma expectativa de vida e uma carga de doenças crônicas incompatível com o produto interno bruto.
O documento trata de problemas como a alimentação inadequada, a piora de saúde das crianças e a influência de empresas privadas nas políticas públicas, mas ignora aspectos importantes das discussões ao abrir mão de consensos científicos ao mesmo tempo em que o governo empreende um combate aos centros de pesquisa que tentam encontrar soluções para as questões nutricionais, sanitárias e de políticas públicas. Além disso, a imprensa americana alega que o relatório cita pesquisas cientificas inexistentes para provar seu ponto — algo característico do uso de inteligência artificial, embora o emprego dessa tecnologia não tenha sido provado.
“A visão geral é que [o relatório] é uma ferramenta retórica”, diz Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência e professora da Universidade Columbia. “Não tem um conteúdo científico robusto, nem proposta de políticas públicas.”
O que o relatório MAHA diz sobre a alimentação americana?
Um dos pontos mais bem recebidos do documento trata da alimentação do estadunidense médio. Hoje, cerca de 70% das calorias consumidas por eles, em especial entre as crianças e adolescentes, é composta por alimentos ultraprocessados – produtos de fácil consumo, ricos em açúcares, gorduras e grãos refinados, mas pobres em nutrientes.
De acordo com o relatório, esse é um dos principais causadores da piora da saúde entre os mais jovens, constatação fortemente respaldada pela ciência. De fato, estudos já mostram que dietas ricas nesse tipo de alimento estão associadas a maiores números de diabetes, doenças cardiovasculares, distúrbios mentais e até mortalidade precoce.
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Esse já era um tópico que especialistas aguardavam, como revelou a pesquisadora Nicole Hassoun, professora da Universidade Binghamton, em entrevista concedida a VEJA em março. “É verdade que nosso sistema alimentar poderia ser muito melhorado para promover a saúde”, disse.
Segundo ela “a forma como tratamos os animais muitas vezes leva ao uso excessivo de antibióticos.” Além disso “há evidências de que alguns aditivos alimentares também não são saudáveis, e seria ótimo ter iniciativas para reduzir as calorias que o americano médio consome, especialmente de açúcar, xarope de milho e outros adoçantes com baixo valor nutricional.”
O relatório levanta esses problemas ao tratar dos aditivos agrícolas e alimentares, como os corantes, e culpa, em partes, a influência da indústria no arcabouço regulatório.
O problema, contudo, é que os relatores parecem focar mais em vilanizar produtos químicos, do que em promover uma alimentação saudável. Apesar de admitir que o padrão alimentar está longe do adequado, ignora questões como o excesso de sal e peca em sugerir políticas efetivas para resolver o problema. Entre as sugestões de especialistas que não estão incluídas no documento estão proibir propagandas de alimentos não saudáveis para crianças, incentivar o consumo de alimentos naturais e ricos em nutrientes ou melhorar a alimentação oferecida nas escolas.
As críticas ainda são potencializadas pelas medidas recentes da administração Trump. Já nos primeiros meses de governo, ele travou uma batalha contra as universidades e reduziu verbas científicas, o que inclui um corte bilionário no Instituto Nacional de Saúde (NIH), um dos principais financiadores de pesquisas que tentavam resolver os problemas levantados pelo relatório.
O documento do movimento MAHA volta a atacar vacinas?
Uma das grandes preocupações da comunidade científica quando o presidente americano elegeu Robert F. Kennedy Jr como secretário de saúde foram as vacinas, já que ele tem um histórico de questionar os resultados científicos que justificam sua aplicação. E o receio não foi em vão. Já nos primeiros dias da sua gestão, o Centro de Controle e Prevenção de Doença, agência regulatória do país, deu início a um grande estudo para investigar a relação entre vacinas e autismo, algo extensivamente refutado por décadas de investigações científicas.
Embora o relatório não faça suposições a esse respeito, ele volta a dizer que o aumento no número de vacinas é prejudicial para as crianças – quando a ciência, na verdade, aponta que a vacinação é uma das principais responsáveis pela diminuição da mortalidade infantil em todo o mundo. A expectativa é que as alegações sirvam para justificar reestruturações executivas que possam dificultar o acesso aos imunizantes.
“As consequência disso são muito graves”, diz Pasternak. “Mudar toda a maneira como a FDA faz a regulamentação e a avaliação de eficácia e segurança pode atrasar muito a aprovação e a atualização de vacinas e até o desenvolvimento de novos imunizantes. Isso pode, inclusive, impactar outros países porque vários deles se apoiam nas decisões americanas ou europeias como referência.”
E isso já tem acontecido. Na última semana, o governo americano deixou de recomendar a imunização de grávidas e recém-nascidos contra a Covid, o que retira a obrigação dos planos de saúde de oferecer a vacina para esses grupos. Embora a cobertura vacinal tenha sido mantida para indivíduos com comorbidades, essa decisão preocupa autoridades de saúde porque os bebês são um dos grupos mais vulneráveis a esse vírus.
Decisões como essa são particularmente perigosas porque a saúde global está em um momento crítico. Enquanto os Estados Unidos e países europeus enfrentam surtos de sarampo, doença altamente contagiosa prevenível com vacina, todo o globo está em alerta pelo perigo de uma possível pandemia causada pelo vírus da gripe aviária.
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Além dos imunizantes, o documento ainda demonstra preocupação com o uso de medicamentos pediátricos, que não foram descritos com mais detalhes, em especial com a falta de um sistema de monitoramento de efeitos adversos – algo difícil de ser realizado no país devido ao sistema de saúde descentralizado. Declarações anteriores também questionaram o uso de antipsicóticos e antidepressivos, sem fundamentações robustas.
O que esperar para os próximos meses?
De acordo com a secretaria, o documento deve embasar uma série de políticas públicas, ainda incertas, que visarão “tornar a America saudável novamente”. Embora o documento jogue luz sobre problemas importantes e que precisam ser resolvidos, a falta de acurácia científica deixa toda a comunidade médica em alerta.
Se por um lado enfrentar o lobby da indústria alimentícia, aumentar o acesso a comidas saudáveis e melhorar a vigilância sanitária possam trazer resultados positivos, inspirando políticas ao redor do mundo, por outro, diminuir o acesso a medicamentos e imunizantes e manter a visão anticientífica do governo poderá resultar em um efeito desastroso, com consequência globais. Por enquanto, ainda há tempo de tomar as decisões corretas.
“Embora uma alimentação melhor pudesse melhorar significativamente a saúde nos EUA, não há muitos motivos para crer que os produtos químicos sejam os principais culpados pela crise de saúde no país”, afirma Hassoun. “Da mesma forma, é difícil entender por que alguém pensaria que o aumento dos problemas de saúde mental nos EUA seja causado justamente pelos tratamentos para essas condições. As pessoas precisam ter acesso não apenas a alimentos nutritivos e água limpa, mas também a exercícios físicos, moradia digna, boas condições de trabalho e assistência médica, entre muitas outras coisas.”