Último mês: Veja por apenas 4,00/mês
Continua após publicidade

Karina Oliani: O coronavírus deixou mais marcas que o Everest

A médica e alpinista compara a sua atuação contra a Covid-19 com a subida da montanha mais alta do mundo

Por Karina Oliani
Atualizado em 4 jun 2024, 15h33 - Publicado em 28 ago 2020, 06h00
KARINA-OLIANI-COVID-19-MEDICA-2020-1.jpg2
(INSTAGRAM @karinaoliani/.)

Quando a pandemia começou, eu estava me recuperando de uma fratura. Em fevereiro, passei por uma cirurgia na perna decorrente de uma queda durante uma escalada. Quebrei a fíbula e a tíbia em dez partes, e tive de pôr três placas e doze parafusos. Para quem fez medicina por vocação, a vontade de ajudar o outro está no DNA. Assim que pude pôr o pé no chão, ainda de muleta, fui dar plantão no hospital de campanha do Anhembi, em São Paulo. Atendi de abril a julho, quando o lugar foi fechado.

A experiência na linha de frente da Covid-19 se relaciona muito com as minhas vivências em escaladas e expedições, sobretudo em três pontos: o distanciamento, a paciência e o foco. O distanciamento é a semelhança mais óbvia. Quando vou para montanhas, fico dois meses isolada. Mas é completamente diferente do que tivemos durante a quarentena, em que todos se falam via internet. Ouvi muita gente reclamando do isolamento, mas é um isolamento entre aspas. Na montanha, perde-se todo tipo de conexão. Só há mais duas ou três pessoas com quem conversar. O mundo está distante, praticamente inalcançável.

Quanto à paciência, a analogia é simples: não se escala uma montanha como o Everest em uma semana. Leva cinco, seis semanas. Demanda tempo, dedicação, resiliência. E a Covid-19 exigiu tudo isso não só de mim, mas principalmente dos pacientes. Quando eu conversava com eles, contava das minhas escaladas para acalmá-los quando perguntavam se receberiam alta em breve. Eu dizia que o corpo precisa de um tempo para se recuperar, tanto nas expedições quanto no caso dos doentes.

Continua após a publicidade

Em relação ao foco, é preciso lembrar que a escalada é um esporte mental. A pessoa precisa estar no presente, atenta. Eu falava para os meus pacientes: “Sei que é difícil passar por isso sem a sua família e sem saber o que vai acontecer, mas você precisa se concentrar na sua recuperação, viver o agora”. É como nas expedições: há um desafio a ser enfrentado. Se você deixar a mente pregar peças no seu corpo, não vai conseguir.

De certa forma, o coronavírus deixou mais marcas que o Everest. Meu pai contraiu a doença durante os meses em que eu trabalhava no hospital. O quadro era severo e ele teve de ficar intubado por trinta dias. Isso me ajudou a entender o sofrimento dos pacientes e de seus familiares. Pude sentir a dor na pele, entender as melhores formas de lidar com ela. Um dia, me chamaram para avisar que não sabiam se ele iria se recuperar. Quando meu pai finalmente voltou a falar, a primeira coisa que disse foi: “Hoje vai ser um ótimo dia”. A força mental dele ajudou na recuperação. Usei esse exemplo para lidar com as famílias dos pacientes.

Aprendi muito com o trabalho no hospital de campanha. Tive todos os tipos de paciente. Atendi um homem adoecido cuja mulher também estava internada por Covid-19. Organizei videochamadas entre os dois para ajudá-­los a se fortalecer. Eu fazia esse tipo de coisa antes de existir a lei que, agora, exige a divulgação de um boletim diário sobre o estado do paciente para a família, pois sabia da importância do contato entre as pessoas.

Continua após a publicidade

Eu escolheria escalar o Everest dez vezes em sequência do que passar por tudo isso de novo. As dificuldades são mais simples. Perto do coronavírus, subir o Everest foi fácil. Ninguém sai de uma expedição dessa igual. A jornada e os desafios marcam o alpinista para sempre, transformam o ser humano. Podemos falar a mesma coisa sobre a Covid-19. A humanidade está saindo transformada da crise. Cada um do seu jeito, é claro. Todos aprendemos algo, mudamos em algum aspecto. Esperemos que seja para melhor.

Depoimento dado a Sabrina Brito

Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Veja e Vote.

A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

OFERTA
VEJA E VOTE

Digital Veja e Vote
Digital Veja e Vote

Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

1 Mês por 4,00

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

a partir de 49,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.