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Jogo patológico: como bets e Tigrinho podem detonar a saúde mental

Combinação entre apostas e celulares forma combo perigoso para dependência e ruína financeira; gastos injustificáveis e mentiras são sinais de alerta

Por Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 19 set 2024, 11h00

Sob o escudo das telas de smartphones, uma epidemia se avoluma e só é notada quando a saúde mental e a vida financeira caminham para a ruína. Antes relacionada a cassinos, bingos e caça-níqueis, a dependência em jogos de azar ganhou tração com as facilidades do mundo online e, em meio à regulamentação das bets no Brasil, tem se consolidado como uma das principais preocupações de psiquiatras, que já sentem os impactos em consultórios. O bolso também se ressente: novos dados sugerem redução do poder de compra e aumento do endividamento relacionados às jogatinas virtuais. 

O tema entrou nesta semana na pauta do ministro da Fazenda Fernando Haddad, que citou a importância de tornar as medidas para desestimular o vício mais amplas, considerando não só os planos em elaboração pela Secretaria de Prêmios e Apostas, como não permitir o uso de cartão de crédito para jogar.

“Estamos vendo a necessidade premente de colocar ordem nisso e de nos associarmos ao Ministério da Saúde. Há muitos relatos de problemas de saúde, de dependência, que nos têm chegado. É preciso criar as condições para que a gente possa dar amparo às famílias”, disse o ministro.

Os números evidenciam o tamanho do problema. Se, por um lado, as bets têm potencial de movimentar R$ 130 bilhões em apostas no Brasil por ano, segundo dados de uma pesquisa da consultoria Strategy&, os índices de endividamento das famílias assustam. A taxa, também em agosto, foi superior a 78%, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio.

Nesse cenário, diferentes entidades observam redução ou mudanças no padrão de consumo, um sinal de contas apertadas. Até o dinheiro que antes ia para alimentos está se esvaindo ao ser destinado para a ilusão de enriquecer apostando.

Especialistas preocupados

O tema do jogo patológico foi o ponto alto do congresso de neurociência Brain, realizado no Rio de Janeiro em julho passado. Em um painel lotado, psiquiatras e outros profissionais da área debateram os efeitos deletérios da dependência e como ela pode ser amplificada quando instalada em outro meio capaz de viciar, os celulares.

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Mascaradas em uma brincadeira que é aceita socialmente, principalmente pela associação a hábitos saudáveis como os esportes, as apostas online ganharam a roupagem dos jogos de videogame mais elaborados, com seus mundos e fases intermináveis.

Ao “betar” em partidas de futebol, é possível apostar desde antes do apito inicial até o último minuto. E não só no placar ou em quem sairá vitorioso: primeiro gol, falta, escanteios e expulsões também entram nas apostas.

Caça-níqueis virtuais, como os que seguem a estética do popular Jogo do Tigrinho, seguem por outro caminho. Ludibriam pela aparência quase infantil, mas deflagram o círculo vicioso de se jogar cada vez mais, seja pela diversão, seja pela tentativa de recuperar as perdas.

No cérebro, os efeitos desses jogos são semelhantes aos obtidos com as drogas de abuso. São ativados os sistemas de recompensa e a sensação de prazer com a convocação de hormônios como a dopamina. Em movimento oposto, é desencadeado um processo de desequilíbrio nas respostas, de modo que a tomada de decisão planejada e a regulação da impulsividade são minadas.

“As bets se inserem na dependência da internet em uma sociedade vulnerável, promovendo estimulação rápida e de alta intensidade por 24 horas”, explicou, em sua apresentação, a psicóloga Elizabeth Carneiro.

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Segundo a pesquisadora, as apostas virtuais mexem com emoções e crenças que ganham reforço social e criam ilusões nos apostadores, geralmente homens jovens. “Eles são influenciados por amigos ou familiares e acreditam que as vitórias são mais determinadas por habilidades, estratégias e conhecimento do que pelo acaso. São distorções cognitivas.”

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Apesar de popular, o “Jogo do Tigrinho” é proibido no Brasil (Redes Sociais/Reprodução)

Enquanto as bets atingem uma fatia da população com mais recursos financeiros, o Tigrinho tem sido associado a grupos mais vulneráveis, o que espelha o comportamento na “vida real”, onde a classe social menos privilegiada acabava perdendo dinheiro no jogo do bicho ou em máquinas caça-níquel. Mesmo com algumas diferenças, no fim, todos querem enriquecer com ajuda do “acaso” e usufruir do dinheiro fácil. “Os valores estão deturpados com a hipervalorização do ‘ter’, porque a potência está muito ligada ao dinheiro e ao sucesso.”

Futebol e influencers

Em um país como o Brasil, apaixonado por futebol, as bets encontraram um campo livre para ganhar adeptos. Ver o ídolo divulgando as empresas mesmo que apenas na camisa do time já é algo que cativa e faz com que os males das apostas pareçam algo distante. Afinal, quem imagina que vai virar dependente?

Nessa conta, entram os influencers, que replicam um estilo de vida desejado e aparecem somando cifras em poucos minutos. São outras figuras que imprimem confiança reforçando o pensamento de que vale a pena tentar a sorte. “Mas sabemos que o jogo foi feito para a mesa ganhar”, relembra Elisabeth, remetendo à máxima dos cassinos.

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Além dos que buscam riqueza, há quem use as apostas para afastar os problemas e tentar encontrar uma válvula de escape. A ideia de que se trata de uma brincadeira não os livra da cascata ativada no cérebro que gera dependência.

Sinais de vício em jogos

Os jogos de azar nos celulares podem ajudar a esconder os primeiros sinais de que as apostas estão em ritmo descontrolado. Ao contrário dos bingos, por exemplo, uma pessoa pode estar “betando” na sala de casa, no quarto ou em uma mesa de restaurante.

Com tantas pessoas ligadas aos aparelhos, é difícil saber se ela está apostando ou checando alguma rede social de tempos em tempos. Assim, o apostador não será visto saindo do cassino ou casa de apostas nem precisa ter nenhum contato olho a olho com funcionários ou conhecidos.

Nesse anonimato, a dependência encontra terreno fértil para se espraiar. Mudanças de comportamento, gastos injustificáveis e mentiras são alguns sinais de que algo não vai bem e que devem chamar a atenção de familiares e pessoas próximas. Assim como em outras condições de saúde, o diagnóstico precoce pode evitar quadros e consequências mais graves.

Isso porque as apostas envolvem comprometimento financeiro, algo que pode fazer as pessoas entrarem em desespero para recuperar as perdas. Por isso, não são incomuns episódios de venda de pertences, roubo, fuga de casa e, em situações mais extremas, tentativas ou suicídios consumados.

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“Temos cerca de 2% de jogadores patológicos na sociedade e estima-se que 15% deles já tentaram suicídio, principalmente nas classes mais humildes”, detalha Elizabeth.

Tratamento da dependência em jogos

Tratar um paciente dependente de jogos pode ser desafiador por envolver a tênue linha entre diversão e vício, além de temas que atraem os seres humanos em geral.  Coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Hermano Tavares detalhou, em sua palestra no Brain, como as apostas podem ser sedutoras.

“O jogo de azar junta duas paixões humanas. Todo mundo gosta de prever e acertar o futuro e todo mundo gosta de dinheiro. Jogar interfere em estados subjetivos, causa excitação e relaxamento, mas tem riscos e incertezas. É uma brincadeira de adulto com coisa séria, o dinheiro.”

Identificada a dependência, a terapia cognitivo-comportamental é a principal abordagem a ser adotada para dar suporte ao paciente e ajudá-lo a fazer um manejo da necessidade de jogar, treinar habilidades para resistir aos impulsos, fazer a prevenção de recaídas e também não sucumbir caso elas ocorram. São avaliados ainda os custos dessas apostas, um balanço de quanto se perdeu e ganhou. Tudo é passado a limpo para o entendimento da dimensão do problema.

“O uso de medicamentos está em discussão e, como novidade, temos a estimulação magnética transcraniana. O futuro aponta para moduladores endocanabinoides e também os canabinoides”, disse o médico.

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A gravidade das apostas virtuais, seja em bets ou Tigrinho, para a saúde metal está posta e mostra como o processo de regulamentação não deve vislumbrar apenas a arrecadação nem ceder aos formatos lúdicos das plataformas. Atrás das telas, há pessoas vulneráveis e é o futuro delas que está em jogo.

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