Impacto do estresse emocional nas doenças de pele desafia a dermatologia
Descamações, manchas, dores, dormência... Sinais desse tipo podem dedurar, também, agruras mentais
A conexão entre a pele e o cérebro é evidente, embora pouco lembrada. O maior órgão do corpo tem origem na mesma fonte de células da qual se forma o sistema nervoso. Assim, desde o berço, o ser humano carrega em si um eixo de comunicação entre o invólucro que representa nossa interface com o mundo e a central de comando do organismo. Não é por acaso, portanto, que, a partir do momento em que passamos a colecionar vivências, algumas delas estressantes ou traumáticas, as emoções possam reverberar à flor da pele. Coceira, irritação, manchas esbranquiçadas, placas avermelhadas e queda de cabelo são algumas das manifestações de doenças cutâneas que, em comum, são impulsionadas ou agravadas por condições como ansiedade e depressão.
Com o aumento na prevalência de transtornos psíquicos, que passaram a atingir um quarto da população global com a pandemia de Covid-19, os médicos que cuidam da derme redobraram a atenção para a influência do estado mental em pacientes com diagnóstico de psoríase, dermatite atópica ou vitiligo. Eles desbravam um campo chamado psicodermatologia, assunto em destaque no último congresso da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), recém-sediado em Florianópolis.
As menções a casos de problemas cutâneos ligados ao estresse emocional ocorrem desde Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), o pai da medicina, mas tal associação só se tornou mais clara no século XIX com William James Erasmus Wilson (1809-1884), um dermatologista inglês que escreveu Doenças da Pele, livro que cunhou o conceito de “neurose cutânea” e apresentou descrições de parasitose delirante (a sensação de que um verme passeia sobre o corpo), alopecia areata, um tipo de calvície, prurido e distúrbios de pigmentação, bem como a presença de suor excessivo nas mãos decorrente de situações de angústia (a hiperidrose). Com o maior conhecimento sobre a nossa casca e o sistema nervoso ao longo do século XX, foi se tornando mais cristalina a relação entre o bem-estar mental e o cutâneo, um percurso de estudos e experiências clínicas que culminou, há exatos trinta anos, na criação da pioneira Sociedade Europeia de Dermatologia e Psiquiatria, seguida por outras entidades dedicadas à causa mundo afora.
A crescente e nova preocupação com a estética também alimentou um olhar mais detido sobre essa conexão, que aparece cada vez mais nos consultórios. “O dado global é de que cerca de 25% dos casos que o dermatologista atende no dia a dia têm alguma relação com uma comorbidade, seja com o estresse piorando um problema de pele, seja pelo aparecimento de uma doença diante da ansiedade ou depressão”, diz Márcia Senra, uma das coordenadoras do Departamento de Psicodermatologia da SBD. De fato, o estado mental pode interferir na imunidade e no controle de enfermidades crônicas como psoríase e até mesmo despertar o herpes-zóster, uma infecção reativada e dolorosa que ataca os nervos periféricos e a pele.
Descamações, manchas, dores, dormência… Sinais desse tipo podem dedurar, também, agruras mentais. Por esse motivo, os especialistas defendem que é fundamental levar essa questão em conta na investigação das mazelas cutâneas. Inclusive porque ela também influencia diretamente o tratamento. “Toda doença mental pode ter repercussão no físico, e vice-versa. A pele não é um mero invólucro”, reforça a dermatologista Ivonise Follador, que coordenou a mesa sobre o tema no congresso da SBD. Boa parte dos problemas dermatológicos é fruto de uma mistura de fatores biológicos e ambientais, sendo que o aspecto emocional pode ser um gatilho ou componente de complicação. “No vitiligo, o papel da carga genética é de apenas 23%. Então, existem motivos que levaram um gene que estava quieto, dormindo, a acordar”, exemplifica Ivonise.
Luto, separação, desemprego… Tudo isso pode repercutir também na pele. Assim como o estresse de enfrentar uma pandemia. Uma pesquisa realizada no auge da crise sanitária mostrou um aumento significativo nos episódios de herpes-zóster, doença que se aproveita de brechas na imunidade para dar as caras. O sofrimento mental pode igualmente disparar quadros obsessivos em que a pessoa inadvertidamente começa a se ferir e a arrancar cabelos, situação cujo controle passa primeiro pelo tratamento psicológico. Sim, diante de tantos desafios e dissabores da vida moderna, a pele pode (e deve) ser um guia para cuidar melhor de si.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860