Gordura no fígado: brasileiros desconhecem o perigo nem sabem como detectá-lo
Pesquisa de abrangência nacional revela desinformação sobre condição que pode evoluir para cirrose ou câncer e contribuir para problemas cardiovasculares

Há males que grassam silenciosamente pela população sem que ela se dê conta da ameaça ou mesmo tenha ideia do seu impacto. É o caso da gordura no fígado, expressão popular para uma doença também popular que pode levar o órgão à falência e o organismo ao colapso.
Estima-se que três em cada dez pessoas convivam com o problema. Contudo, segundo nova pesquisa, 60% dos brasileiros não sabem como flagrá-lo e 40% sequer conhecem os termos que dão nome à condição e a seus prejuízos.
Esse é o principal diagnóstico de um levantamento encomendado pela farmacêutica Novo Nordisk ao Instituto Datafolha para entender o grau de (des)conhecimento da população sobre a esteatose hepática ou doença hepática gordurosa não alcoólica, alguns dos nomes técnicos para a gordura no fígado.
O estudo ouviu 2 013 cidadãos de 16 anos ou mais, contemplando de forma representativa a sociedade em termos de classe social, região e sexo.
“O dado mais alarmante é que 41% dos entrevistados desconhecem termos como esteatose hepática, fibrose e mesmo cirrose. E isso é preocupante se pensarmos que essa já é a doença mais comum do fígado mundialmente”, comenta a hepatologista Claudia Oliveira, professora da Faculdade de Medicina da USP. “A esteatose pode levar à cirrose e ao câncer de fígado e ainda é capaz de piorar condições metabólicas já existentes, como problemas renais e cardiovasculares”.
O mapeamento do Datafolha também descobriu que cerca de 60% dos brasileiros não sabem qual exame é capaz de detectar a gordura no fígado. “A população desconhece o tema e, às vezes, os próprios médicos não valorizam a importância de rastrear a esteatose e encaminhar o paciente a um especialista quando necessário”, diz Oliveira.
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O elo com a obesidade
Calcula-se que 80% das pessoas acima do peso tenham gordura no fígado. No novo estudo, de acordo com as entrevistas e levando em consideração o índice de massa corporal (IMC), 66% dos participantes se enquadravam nos critérios de sobrepeso ou obesidade – isto é, tinham um IMC maior que 25.
Paradoxalmente, apenas 7% desse público recebeu um diagnóstico formal de esteatose hepática. Entre aqueles com o quadro detectado, 10% não foram aconselhados a fazer uma investigação mais detalhada, menos da metade foi informada de que a condição tinha relação com o peso e 65% dos casos foram classificados em estágio leve.
É de pressupor, portanto, que milhares de pessoas com gordura no fígado sequer saibam que carregam um problema por trás de inflamação e danos potencialmente progressivos no órgão. A esteatose não é inofensiva. Pode evoluir para uma hepatite, gerar cicatrizes no fígado que, com o tempo, comprometem suas inúmeras funções (quadro chamado de fibrose) e avançar para situações ainda mais severas como cirrose e câncer.
Costuma andar de mãos dadas com o excesso de peso, o diabetes tipo 2 e as doenças cardiovasculares, inclusive elevando o risco de infarto e outras complicações. Dessa forma, também tem ligação com o sedentarismo e uma dieta desequilibrada, geralmente rica em carboidratos simples e gordura saturada e poucas hortaliças e fontes de fibras.
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Como é feito o diagnóstico?
A alta prevalência da gordura no fígado preocupa em termos de saúde pública por expor pessoas em idade produtiva a um possível transplante hepático no futuro, além de outras situações que minam a qualidade e a expectativa de vida.
A detecção precoce, como é de se supor, faz diferença para impedir essa rota de estragos. “Hoje em dia indicamos o rastreamento a pessoas que estão acima do peso, com IMC maior que 25, a indivíduos com enzimas hepáticas alteradas [algo apontado por exames de sangue] e a pacientes com critérios para síndrome metabólica, ou seja, que possuem condições como diabetes tipo 2, aumento da circunferência abdominal, colesterol alto e hipertensão”, explica Oliveira.
Embora a gordura no fígado possa ser visualizada ocasionalmente em um ultrassom, o método mais recomendado para bater o martelo e determinar o nível de gravidade é um exame de imagem chamado elastografia, geralmente associado à ultrassonografia ou à ressonância magnética. Na ausência dela, alguns cálculos baseados em resultados de exames de sangue ajudam a inferir o grau de risco hepático.
O tratamento da gordura no fígado
A exemplo da obesidade, ele passa por mudanças no estilo de vida. Balancear a dieta e praticar exercícios físicos regularmente estão na base do tratamento.
Mas ainda não há um remédio disponível no Brasil capaz de reverter diretamente o depósito gorduroso e seus estragos.
No entanto, há mudanças no horizonte. Nos Estados Unidos, foi aprovado recentemente o primeiro medicamento com atuação na redução do acúmulo de gordura e na extensão dos danos hepáticos, o resmetirom – que ainda não tem aval no país.
Outra aposta reside na nova geração de medicamentos para obesidade e diabetes tipo 2, os análogos de GLP-1. A hepatologista Claudia Oliveira liderou no Brasil o estudo que investigou a semaglutida (de Ozempic e Wegovy) diante da esteatose hepática. “Demonstramos que houve melhora na inflamação causada pela gordura e na fibrose hepática, que é o que acaba levando à cirrose”, conta a professora da USP.
Tudo indica que a medicação deverá receber sinal verde das agências regulatórias para o tratamento da gordura no fígado associada ao diabetes ou ao excesso de peso. Outra droga que obteve bons resultados nessa direção foi a tirzepatida (Mounjaro).