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‘Fragmentado’ da vida real: convivendo com várias personalidades

A britânica Melanie Goodwin descobriu aos 40 anos que desde a infância tem múltiplas personalidades desencadeadas por abusos sofridos na infância

Por Da Redação
Atualizado em 4 jun 2024, 20h42 - Publicado em 23 jun 2017, 18h13

A britânica Melanie Goodwin, de 64 anos, tinha uma vida normal, apesar de não se lembrar de nenhuma memória de sua infância e parte de sua adolescência. Porém, desde os seus 40 anos de idade, após uma tragédia familiar, as coisas mudaram e aos poucos, Melanie descobriu dentro de si diferentes personalidades, de suas diferentes fases da vida a partir dos três anos de idade, segundo informações da rede britânica BBC.

Melanie sofre do mesmo transtorno mental de Kevin, personagem principal do filme ‘Fragmentado’, do diretor M. Night Shyamalan, lançado este ano. Ambos foram diagnosticados com transtorno dissociativo de identidade (TDI), também conhecido como transtorno de múltiplas personalidades, em que memórias, comportamentos, atitudes e a própria percepção de idade podem alternar de uma hora para outra.

A diferença é que enquanto Kevin é apenas um personagem que vive com 23 personalidades em seu corpo – muitas delas extremamente agressivas -, Melanie é casada, tem filhos e trabalho e “nove partes adultas diferentes”.

“Nós [forma como ela se refere a suas diferentes personalidades] tínhamos várias partes adultas. No desenvolvimento deveria haver uma transferência, mas como não crescemos naturalmente, adaptamos a nós mesmas. No fim, havia nove partes adultas diferentes, cada uma administrando um estágio de nossa vida adulta sem abusos.”, contou à BBC. 

Felizmente, hoje, com apoio psiquiátrico e de seu marido, ela aprendeu a viver e a conviver com suas múltiplas personalidades.

Múltiplas personalidades

Porém, chegar nesse estágio harmônico não foi fácil. A descoberta das diferentes personalidades trouxe à sua consciência não só as lembranças perdidas, mas também memórias de abuso que havia sofrido na infância, o primeiro com apenas três anos de idade, e na adolescência – o último foi aos 16 anos. “Eu não tenho provas. Eu tenho que aceitar o que eu acredito que aconteceu, a minha realidade.”, disse.

Traumas na infância

Hoje, Melanie é tratada no Centro Pottergate para Dissociação e Trauma, em Norwich, no Reino Unido. Remy Aquarone, psicoterapeuta administrador do centro, disse à BBC que na maioria dos casos diagnosticados de TDI existe um histórico de abuso infantil, muitas vezes iniciado antes dos cinco anos.

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A criança, ao tentar lidar com essas experiências traumáticas tão cedo, divide-se em partes. Uma parte lida com o abuso e as consequências emocionais e físicas e outra continua a lidar com a existência cotidiana, permitindo que ela siga em frente. Essas partes podem ser inúmeras, dependendo dos diferentes cenários.

“Ela está usando sua cognição inconsciente para adaptar sua maneira de pensar e seu comportamento para conseguir se manter segura. O trauma pode congelar você no tempo. E porque o trauma continua com o passar dos anos, há vários pequenos congelamentos acontecendo por toda parte.”, explicou Aquarone.

Ligações afetivas

No entanto, nem todas as pessoas que passam por abusos na infância desenvolvem o transtorno. Segundo o especialistas, fatores como a ausência de ligação afetiva normal e saudável durante a infância pode desencadear o distúrbio. Na psicologia, essa ligação é o laço formado entre uma criança e um cuidador, que a apoia emocionalmente e ajuda educa-la. Quando as crianças desenvolvem laços seguros, conseguem lidar melhor com a vida de uma forma geral.

“Suas relações tendem a ser mais tranquilas. Elas tendem a ganhar mais dinheiro, ser mais apreciadas e reconhecidas pelos outros e se meter menos em brigas. Elas também tendem a experienciar a vida com mais tranquilidade, então é mais agradável para elas”, disse Wendy Johnson, professora de psicologia da Universidade de Edimburgo.

Por outro lado, sem essa laço, a criança cresce sem referências e precisa se defender sozinha. Para Melanie, é exatamente isso que falta para as pessoas com TDI. “O que não tivemos quando criança é um pai ou mãe metaforicamente segurando você e o ajudando a aprender como lidar consigo mesmo.”

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Falta de estabilidade

“Na verdade, nossos ambientes tendem a ter mais estabilidade, o que contribui à consistência que tendemos a demonstrar”, explicou Wendy. Se as influências externas mudam, até mesmo na vida adulta, nós também mudamos. Perder o emprego ou ter filhos são grandes mudanças que surpreendem nossos comportamentos. Por isso os questionamentos de identidade entre os jovens, no início da vida adulta, é algo tão discutido.

Essa estabilidade não é presente na vida de quem vive com identidades dissociativas, portanto, suas personalidades podem mudar dramaticamente. Melanie tem uma parte anoréxica e uma parte que já tentou suicídio duas vezes, quando as barreiras das personalidades não pareciam suportar a dor. Sua parte de três anos de idade se assusta facilmente com coisas que trazem de volta lembranças de seus traumas, como um cheiro ou o andar de um homem. Nesses casos, ela congela ou até mesmo se esconde. Por outro lado, sua parte de 16 anos pode até flertar.

Memórias apagadas

Algumas pessoas com o transtorno podem se sentir perdidas no tempo, como se estivessem sempre pulando dias ou até mesmo semanas. “Algumas pessoas desenvolvem casos [extraconjugais]. Bem, não são exatamente casos porque elas não tinham ideia de que eram casadas”, explicou Melanie. “Você nasce e tem uma linha do tempo com toda sua vida. Se você ficar fragmentado, você não tem mais essa linha.”

De acordo com Aquarone, muitos pacientes se sentem superficiais em relação às emoções e ao passado. “De certa forma elas são, porque a essência de quem você é fica presa do lado de dentro”, disse ele. “Eu posso me referir a um comportamento que tinha quando adolescente, por exemplo, para ter uma visão mais ampla de mim mesmo. O preço da dissociação é que não há como lembrar como as coisas eram antes.” Psicólogos costumavam pensar que a nostalgia, o uso da memória para lembrar bons tempos no passado, era negativa e prejudicial. Agora, devido a esse dilema, existem estudos que apontam o oposto.

Descoberta

Melanie suspeitou que poderia ter o transtorno lendo o livro The Flock (O Bando”, em tradução livre), de Joan Frances Casey. Assim como Casey, ela tinha diferentes partes emergindo em si. Ela então conversou sobre o assunto com seu marido, com quem era casada há mais de 20 anos.

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Surpreendentemente, ele achou que fazia sentido e conto-lhe que uma vez havia perguntado se ela queria café e Melanie disse ‘Sim, adoraria um café”. No dia seguinte ele perguntaria ‘Você quer um café?’ e ela respondeu “Você sabe que eu não bebo café, sou alérgica a café!”.

Hoje, Melanie sabe que a parte de 16 anos não consegue beber café, mas ela ama café. No entanto, ao contrário de outras pessoas com TDI, ela sente que há uma parte dominante com uma idade compatível com a de seu corpo.

Diagnóstico é fundamental

O primeiro passo para um bom tratamento é o diagnóstico correto em relação ao transtorno, que pode ser bastante controverso entre os especialistas. O TDI se confunde com muitos outros transtornos psicológicos, como a esquizofrenia, bipolaridade e transtorno de personalidade borderline, mas a questão central é a aceitação de sua existência nos manuais psiquiátricos ao redor do mundo. Alguns especialistas acreditam que o transtorno não passa de uma fantasia, fingimento dos pacientes. No entanto, pesquisas com imagens de ressonância magnética mostram o contrário.

Em seguida, o tratamento é feito com terapia, confiança e aceitação. Um especialista em TDI pode levar vários meses para ajudar um paciente. Para começar, é necessária a criação de um laço forte com um terapeuta que poderá ajudar o paciente a  conversar com suas diferentes partes e respeitá-las, pois quando as barreiras entre as partes começaram a cair, há uma sobrecarga.

Convivência

Durante os dez anos que se passaram depois de suas identidades emergirem, Melanie acreditava ser impossível administrar qualquer coisa além do básico em sua vida. Com o tempo, ela aprendeu a ouvir suas vozes e as histórias que tinham a contar. “Aprendemos a compartilhar essa vida em comum entre nós”. Agora, ela dirige a associação First Person Plural (Primeira Pessoa do Plural, em tradução livre), onde conversa com psicólogos, psiquiatras e cuidadores, com o objetivo de divulgar mais informações sobre o TDI.

Recentemente, com a participação de Aquarone e do Centro Pottergate para Dissociação e Trauma, a associação organizou a primeira conferência sobre tratamentos para dissociações relacionada a traumas, com médicos e voluntários do Reino Unido. Um dos principais desafios é que um especialista em TDI pode levar vários meses para ajudar um paciente e, geralmente, isso está apenas disponível no sistema privado de saúde.

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